Perdi as contas de quantas vezes escrevi e falei: o negócio de seguro é um ilustre desconhecido.

Fala-se muito, sabe-se pouco a respeito. Além disso, o conhecimento fica quase que restrito aos que o operam. E o que se fala nem sempre é bom, muito menos veraz. Há desconhecimento geral sobre os fundamentos do negócio e até certo ranço ideológico contra ele.

Não são poucos os que não acham errado prejudicar seguradoras porque “são ricas demais”. Uma mentira aqui, outra acolá, e tudo bem; afinal de contas, “elas têm dinheiro”.

O engano coletivo é a soma de muitos enganos ou autoenganos. E assim, nessas enganações mútuas e reflexas, vai a sociedade, seguindo curso em meio aos mais acidentados mares.

Há até quem, com ares de Robin Hood, justifique a fraude pura e simples – desde que “não seja muito grave nem prejudique pessoas”. Para muitos, lesar a seguradora não ofende a ética nem grita contra o bom-senso. Sem falar no caráter ilícito da conduta lesiva, há nisso tudo uma ignorância acentuada.

Não que lesar a riqueza das seguradoras tenha alguma justificativa, porque não tem, mas o fato ignorado quase por completo é que não é só (e este “só” bem entre aspas) ela que é prejudicada diante da mentira, da fraude, porém todo o colégio de segurados.

A vítima do dano é o mútuo que a seguradora representa. E quando se leva em consideração o signo social do negócio de seguro, é a coletividade que perde. Vê-se que tudo é realmente mais complicado do que parece e que relações jurídicas imbrincadas em outras exigem sempre especial e detida atenção.

Todavia, em que pese a importância disso tudo, não é da fraude ou da mentira que desejo tratar. Esses são temas que se relacionam com o princípio da boa-fé objetiva e que merecem um estudo cuidadoso, à parte.

Quero tratar de outra coisa: os limites do dever de indenizar das seguradoras.

Infelizmente, mesmo as coisas mais óbvias têm que ser constantemente afirmadas e defendidas, sob pena de serem desnaturadas, ainda que por ingenuidade.

Muitas vezes vejo nos litígios judiciais as seguradoras serem condenadas ao pagamento de indenizações acima dos limites estabelecidos expressamente nas apólices (as importâncias seguradas) e por riscos não cobertos ou expressamente excluídos. Condenações juridicamente erradas e fundamentalmente injustas.

É certo que seguradora nenhuma poderia ser obrigada a pagar indenização acima da importância segurada, muito menos por risco não coberto ou, pior, por risco excluído. Essa constatação seria de uma incrível obviedade se o desrespeito a ela também não fosse incrivelmente comum.

Há mais mistérios entre o negócio de seguro e a realidade forense do que supõe nossa vã filosofia.

Uma das portas de entrada para essas estranhas condenações, penso eu, é aberta pelo direito do consumidor nas controvérsias entre segurados e seguradores.

Diretamente regulado pelo Código Civil, o contrato de seguro tem normas específicas e, em muitos casos, não se alinha ao conceito de relação de consumo. Mesmo assim, a incidência do Código de Defesa do Consumidor para a solução de controvérsias é mais comum do que se possa imaginar.

Quando se aplica a legislação consumerista, surge um rol de princípios e normas que pode eventualmente retirar o contrato de seguro do arquétipo, da base em que ele se funda. Além disso, esse contrato é muito anterior ao direito do consumidor e tem uma dinâmica própria, inconfundível.

Submetê-lo, sem critério, ao regramento do consumidor é esvaziá-lo de sua dignidade original e, sob o argumento duvidoso de proteger o consumidor, alterar perigosamente sua substância.

Por isso que, em muitas contestações, envolvendo frequentemente inadimplidos contratos de transporte, nas quais defendo o segurador de pleitos de cobrança ou de reparação civil, costumo apresentar argumentos contrários à incidência da legislação consumerista.

Por oportuno, reproduzo-os a seguir.

Abro aspas:

DA INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Ad cautelam, ponto que merecerá a atenção do Ilustre Julgador é que o Código de Defesa do Consumidor não se aplica ao caso concreto.

A Autora definitivamente não atende aos pressupostos da hipossuficiência e da vulnerabilidade previstos pelo legislador.

É empresa que se dedica empresarialmente ao transporte de cargas de terceiros. O transporte rodoviário de cargas, portanto, é inerente à atividade empresarial que desempenha. Assim não se vislumbra hipossuficiência econômica, muito menos vulnerabilidade técnica a justificar as disposições da legislação consumerista no caso concreto.

Especificamente em relação ao contrato de seguro, a Autora não pode se dizer inexperiente, ou que não tivesse ciência das coberturas (e sua exclusões) contratadas, até porque foi muito bem assistida por um corretor de seguro.

Logo, será um completo absurdo invocar, no curso da ação, o CDC para defender a inversão do ônus da prova ou questionar a validade de cláusulas contratuais, como a que seleciona determinadas empresas previamente autorizadas para o gerenciamento e expõe condições legítimas para não agravar o risco.

As cláusulas eram todas de uma clareza extraordinária. Não pode a Autora se defender sob o argumento de que era contrato de adesão. Nem cabe pedir interpretação em seu benefício pois a cláusula não é ambígua nem contraditória.

Veja, Excelência, que os tribunais estaduais vêm afastando a incidência do Código de Defesa do Consumidor, no âmbito do seguro de transportes:

APELAÇÃO CÍVEL – TRANSPORTE DE CARGA – SEGURO – CDC – NÃO INCIDÊNCIA – CARGA FURTADA ISOLADAMENTE SEM O FURTO DO CAMINHÃO QUE A TRANSPORTAVA – NÃO PAGAMENTO DO SEGURO – EXISTÊNCIA DE CLÁUSULA QUE PREVÊ O PAGAMENTO DO SEGURO SOMENTE NA HIPÓTESE DE FURTO SIMULTÂNEO DA CARGA E DO CAMINHÃO QUE A TRANSPORTAVA – AGRAVAMENTO DO RISCO PELO SEGURADO – NÃO CONFIGURAÇÃO. – Em casos de contratos de seguro de transporte de mercadorias, não se aplica o CDC, pois a relação jurídica existente entre a seguradora e a transportadora segurada é de caráter mercantil, sendo o seguro adquirido como incremento da atividade principal da transportadora, de inegável caráter negocial, profissional e lucrativo – Se o contrato do seguro prevê a cobertura da carga, em caso de furto, somente se ela for furtada concomitantemente com o caminhão que a transporta, não se há de se falar em pagamento do seguro se apenas a carga foi furtada – Para que a seguradora exonere-se do pagamento, nos termos do art. 768 do Código Civil, há de haver conduta que importe no voluntário e consciente agravamento do risco por parte do segurado para receber a quantia indenizatória acordada, ou seja, não basta que a conduta tenha sido praticada voluntariamente pelo segurado, ainda que com culpa grave; é preciso que haja a intenção preordenada de obtenção do capital em favor do beneficiário e que essa conduta tenha, nessa medida, dado ensejo ao incremento do risco segurado. V.V.: EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – “CONTRATO DE SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR RODOVIÁRIO POR DESAPARECIMENTO DE CARGA” – FURTO DE CARGA – CLÁUSULA QUE CONDICIONA A COBERTURA DO EVENTO À CONCOMITÂNCIA DA SUBTRAÇÃO DO VEÍCULO – PREVISÃO ABUSIVA E NULA – NEGATIVA INDEVIDA DA GARANTIA – AGRAVAMENTO DO RISCO – INOCORRÊNCIA – INDENIZAÇÃO
SECURITÁRIA DEVIDA – A Cláusula que estabelece que o veículo transportador deve ser subtraído conjuntamente com a carga para que o furto da mercadoria tenha a cobertura securitária pactuada se mostra abusiva e nula, por não atender ao Princípio da Boa-fé objetiva, insculpido no art. 422, do Código Civil, e porque a sua aplicação descaracterizaria a finalidade protetiva do Pacto celebrado entre os litigantes (art. 424, do CCB/2002) – Não incidindo a previsão contratual excessiva e eivada de nulidade e, ainda, inexistindo demonstração de que a Segurada tenha agravado o risco, na forma delineada no art. 768, do Código Civil, a indenização contratada lhe é devida.
(TJ-MG – AC: 10720150002593001 MG, Relator: Evandro Lopes da Costa Teixeira, Data de Julgamento: 29/11/2018, Data de Publicação: 11/12/2018)

No julgamento do recurso de Apelação Cível nº 10000181241043001, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais abordou, com muita propriedade, a questão da aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas disputas judiciais entre seguradora e segurado, conforme se verifica na ementa e nos trechos da decisão abaixo reproduzida:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO ORDINÁRIA – CONTRATO DE SEGURO – EXCLUSÃO DE COBERTURA EXPRESSA – PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO – NEGATIVA – CABIMENTO – SENTENÇA REFORMADA. O “segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes” (art. 765, CC/02). A cláusula que prevê a exclusão da cobertura de sinistros envolvendo cargas transportadas pela Terra Forte Exportação e Importação de Café Ltda., é bastante clara e ainda está em destaque. O simples fato de haver a renovação automática das apólices, não exime o segurado de ficar atento às cláusulas objeto de renovação. V.V. Embora não seja aplicável a legislação consumerista ao caso em exame, constata-se que as provas dos autos foram suficientes para demonstrar que a alteração contratual se deu de forma unilateral, sem a anuência da Segurada.
(…)
Peço vênia ao eminente Desembargador Relator, para divergir do seu ilustrado voto.
É incontroversa a existência de contrato de seguro firmado pelas partes, não pairando controvérsia acerca da sua vigência ao tempo da ocorrência do sinistro.
Inexiste relação de consumo entre as partes, vez que se discute contrato firmado entre duas pessoas jurídicas, não se encaixando a contratante no conceito de consumidor ditado pela legislação consumerista. 
Embora esteja prevista a possibilidade de uma pessoa jurídica figurar em determinada relação como consumidora, conforme prevê o art. 2º, CDC, é necessário que ela seja destinatária final do produto ou do serviço adquirido, ou seja, que não o tenha adquirido para o desenvolvimento de sua atividade negocial.
Assim, deve-se considerar que a empresa Apelada não é consumidora, visto que o produto adquirido não se destina ao seu consumo final, mas à proteção da sua atividade empresarial.
Conclui-se, portanto, que as normas do CDC não se aplicam à relação estabelecida entre as partes.
Aplicável a lição de Toshio Mukai:
“Observa-se, por outro lado, que, entretanto, a pessoa jurídica só é considerada consumidor, pela Lei, quando adquirir ou utilizar produto ou serviço como destinatário final, não, assim, quando o faça na condição de empresário de bens e serviços com a finalidade de intermediação ou mesmo como insumos ou matérias primas para transformação ou aperfeiçoamento com fins lucrativos (com o fim de integrá-los em processo de produção, transformação, comercialização ou prestação a terceiro.” (Toshio Mukai, Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, Editora Saraiva, p. 6). (…) 
(TJ-MG – AC: 10000181241043001 MG, Relator: Marco Aurelio Ferenzini, Data de Julgamento: 05/02/0019, Data de Publicação: 08/02/2019)

A relação empresarial entre as partes do presente litígio afasta a incidência do Código de Defesa do Consumidor, uma vez que a Autora não é destinatária final do seguro, que em verdade é contratado para resguardar sua atividade econômica e bens de terceiro.

Nesse sentido, a Ré destaca julgados das Câmaras de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS MOVIDA EM FACE DA SEGURADORA E CORRETORA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. MANUTENÇÃO. CONTRATO DE SEGURO GARANTIA DO CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO. EMPREITEIRA. DENTRE AS CONDIÇÕES IMPOSTAS PELA SEGURADORA, ESTÁ A REALIZAÇÃO DE APLICAÇÕES JUNTO A BANCO QUE, ANTES DO LEVANTAMENTO DOS APORTES, TEVE A LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL DECRETADA. INAPLICABILIDADE DAS REGRAS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. AUSÊNCIA DE VULNERABILIDADE DA AUTORA NO CASO CONCRETO. ALEGAÇÃO DE QUE FOI OBRIGADA A ANUIR COM A CLÁUSULA QUE DETERMINAVA A REALIZAÇÃO DA APLICAÇÃO EM CDB COM INSTITUIÇÃO FINANCEIRA PRÉ-DETERMINADA.
LIBERDADE DE CONTRATAÇÃO. EXPRESSA ANUÊNCIA DA AUTORA. INÉRCIA DA SEGURADA EM RECLAMAR, LOGO APÓS O VENCIMENTO DA APÓLICE E ANTES DA LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL DO BANCO, O LEVANTAMENTO DOS APORTES
FINANCEIROS. VÍCIO DE CONSENTIMENTO E RESPONSABILIDADE DAS RÉS NÃO VERIFICADOS. APELAÇÃO DA AUTORA NÃO PROVIDA.” 
(TJSP – Apelação: 0517793-86.2000.8.26.0100 – Relator(a): Alexandre Lazzarini; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 28/03/2017; Data de registro: 08/04/2017
“SEGURO COMERCIAL – Assalto – Transporte de R$95.000,00 – Cobrança de indenização securitária – Seguro que estava limitado aos valores inferiores a R$50.000,00 por cláusula contratual expressa – Recusa da seguradora que guarda correspondência com o sinalágma do contrato – Risco de sinistro que aumenta proporcionalmente ao montante transportado – Inexistência de relação de consumo – Sentença integralmente mantida – Recurso improvido.”
(TJSP – Apelação: 0276930-66.2009.8.26.0000 – Relator(a): Francisco Loureiro; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 25/03/2010; Data de registro: 12/04/2010; Outros números: 6905964100)
“AÇÃO DE COBRANÇA DE SEGURO – TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE MERCADORIAS – ROUBO DA CARGA – Alegação da apelante de que a segurada não atendeu as exigências da seguradora.  OCORRÊNCIA: Incontroverso que o pedido de indenização efetuado pela transportadora autora foi indeferido pela Seguradora ré, em razão do descumprimento de duas condições consistentes na liberação do motorista pelo Gerenciador de Riscos e na averbação prévia do transporte. Patente o conhecimento por parte da transportadora autora do descumprimento da sua obrigação contratual, tanto que buscou as providências necessárias para obter a liberação do motorista, horas depois da ação criminosa. Sendo assim, o descumprimento das obrigações contratuais assumidas entre as partes de consulta e liberação do motorista e de averbação do transporte implica na perda do direito da autora de ser indenizada pelo sinistro ocorrido. Além do mais, a transportadora ré não se incumbiu de justificar ou provar o motivo do não cumprimento das referidas obrigações contratuais.  Inteligência do artigo 765 do atual Código Civil. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – Sentença que afastou o princípio da “pacta sunt servanda” por entender que se aplicam as regras do Código de Defesa do Consumidor. INAPLICABILIDADE: A questão não é de relação de consumo, porque a atividade da autora é a de empresa de transportes e por tal razão o eventual pagamento pela Seguradora de indenização pelo sinistro seria por ela utilizado no cumprimento da sua atividade empresarial de transportes, para cobrir os riscos que a envolvem. Nota se que somente nos contratos de seguro de vida tem sido reconhecida a existência da relação de consumo entre a seguradora e o segurado. RECURSO PROVIDO.” 
(TJSP – Apelação 0451170-97.2010.8.26.0000 – Relator(a): Israel Góes dos Anjos; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 37ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 30/10/2012; Data de registro:19/11/2012; Outros números: 990104511704)
“Ação de indenização por danos materiais e morais – Contrato de seguro facultativo de responsabilidade civil do transportador rodoviário por desaparecimento de carga – Ilegitimidade passiva da corretora – Ausência de prova de conduta culposa – Mera intermediária do negócio jurídico – Ocorrência de sinistro – Exclusão expressa de cobertura na hipótese de desaparecimento de mercadoria não embarcada, durante a execução de operação de carga ou descarga em depósito, pátio ou armazém, em decorrência de roubo – Inexistência de abusividade – Disposição de natureza eminentemente privada, patrimonial e disponível a critério dos interessados – Validade e eficácia da limitação do risco – Interpretação lógico-sistemática dos arts. 122, 1.ª parte, e 760 do Código Civil – Não incidência da legislação consumerista – Teoria finalista – Incremento da atividade empresarial com a influência na composição do preço do frete – Inexistência da condição de destinatário final do produto ou do serviço – Situação excepcional de vulnerabilidade não identificada – Recurso do réu provido, improvido o do autor.”
(TJSP – Apelação 0056202-58.2010.8.26.0224 – Relator(a): César Peixoto; Comarca: Guarulhos; Órgão julgador: 38ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 18/03/2015; Data de registro: 20/03/2015)

Da mesma forma que o contrato de seguro não é salvo-conduto em favor do segurado, quando o evento não estiver coberto pela apólice de seguro, a legislação consumerista não será uma espécie de coringa aplicável para transformar o indevido em devido e o errado em certo.

O contrato de seguro rege-se pelas regras de direito de seguro, não pelas de direito do consumidor.

Fecho aspas

Mais do que esforço retórico, o objetivo de expor em peça forense as considerações acima reproduzidas é a de tentar convencer juízes de que nem sempre o Código de Defesa do Consumidor se faz aplicável às controvérsias securitárias.

Bem sei que muita gente não pensa assim. Grande é o exército de defensores da intromissão da legislação consumeristas no Direito de Seguros e igualmente grande é o conjunto de decisões favoráveis.

Isso não quer dizer que a questão esteja perto da pacificação. A força do exército inimigo é circunstância, não causa, muito menos efeito.

A defesa da primazia das regras de Direito de Seguros há de ser feita o tempo todo, não com objetivo de beneficiar seguradores, mas de manter a boa ortodoxia jurídica.

Mantida a ortodoxia, todos ganham: a disciplina, os seguradores, os corretores de seguro e os segurados. Quando o dique do Direito bem aplicado se rompe, não se pode controlar a força das águas nem se saber, de antemão, o que será atingido. O benefício aparente em um litígio pode trazer malefícios a dezenas de outros.

Daí a convicção que tenho nos argumentos expostos e não incidência da legislação consumerista.

Quando o Código de Defesa do Consumidor é aplicado, e não as regras de Direito de Seguros, rompem-se paradigmas normativos, e figuras próprias de um sistema legal são aplicadas equivocadamente em outro.

Um dos problemas reside na macro visão consumerista que muitas vezes acaba por autorizar, ainda que às avessas, a condenação de seguradora no pagamento de indenização além dos limites da apólice de seguro[1]. Entenda se por “limites” não apenas a importância segurada, mas a própria cobertura do risco que se transforma em sinistro.

Ocorrido o sinistro e efetuada a devida regulação, com a superposição da norma contratual ao fato, o dever de um segurador é o de pagar a indenização ao segurado ou beneficiário e, sendo o caso, depois buscar o ressarcimento em regresso.

Para que isso ocorra é imprescindível que tudo esteja contemplado na apólice. O cuidado com a correspondência do fato ao clausulado é vital para a saúde do negócio de seguro e a proteção dos segurados em geral.

Fala-se em proteção dos segurados em geral porque a seguradora não é apenas ela; é ela e os participantes do mútuo. Exatamente por isso, pela força do princípio do mutualismo, que nenhum pagamento de indenização pode ser feito sem a estrita observação dos termos e condições contratuais.

Respeitar os limites da apólice (valores e riscos cobertos ou excluídos) é imprescindível. Nem mesmo a legislação consumerista, com toda sua correta carga protetora, é capaz de mudá-lo.

Sobre os limites de responsabilidade da seguradora, aliás, importante lição é dada por Carvalho Santos[2]: “A responsabilidade da seguradora fica restrita ao risco assumido, isto é, ao risco previsto no contrato”.

No contrato de seguro, as partes têm liberdade para contratar as coberturas e, principalmente, delimitar os valores de sua contribuição, de sorte que, conforme enfatiza Pedro Alvim3: “Visto pelo prisma jurídico, o contrato não contraria qualquer disposição legal. O segurador só se obriga pelos riscos que segurou. E a apólice pode limitar ou particularizar os riscos.”

Quando não são observados esses limites, o contrato de seguro é desnaturado. Daí a importância de não se aplicar, indistintamente, uma legislação tão poderosa como a consumerista.

Nesse ponto se encontra a importância de interpretar os contratos restritivamente, sob pena de alterar o equilíbrio econômico-financeiro que rege o sistema securitário.

O seguro não é carta de responsabilidade integral; caso fosse, todos sairiam cobrando o que quisessem do segurador, independente da análise fática — que às vezes, ao ser enunciada com a clareza, afasta a indenização —, prejudicando a saúde do negócio e os próprios interesses sociais, por mais que reflexos.

[1] NOTA: não confundir limites da apólice de seguro com limitação de responsabilidade de causador de dano. Esta é errada e fere de morte o princípio da reparação civil integral, de que trata o art. 944 do CC. Já a ideia de limites da apólice reside nos exatos moldes do seguro contratado, na contraprestação (prêmio), no cálculo atuarial, na importância segurada e nos riscos cobertos bem como os expressamente excluídos. Esta ideia é regular, ordenada pela moral e fundamentalmente jurídica. Já aquela forma de limitação é, a rigor, antijurídica e tem por objetivo nada elogiável a premiação reflexa do causador de dano.

[2] CARVALHO SANTOS. Código Civil Brasileiro Interpretado, Vol. XIX, p. 370. 3 ALVIM, Pedro. O contrato de seguro, 3ª edição, Rio de Janeiro: Forense.

Os princípios que norteiam as relações contratuais evidentemente impedem que isso ocorra, e o Direito de Seguros dá a exatamente medida de tudo aquilo que importa ao ramo negocial que lhe empresta o nome. Daí, convém repetir e insistir, a importância de não se aplicar a legislação consumerista em litígios envolvendo o contrato de seguro.

Nesse sentido, destaca-se a jurisprudência sobre a impossibilidade de pagamento de indenização nas hipóteses de descumprimento de normas contratuais, que não são cláusulas abusivas nem se submetem ao que dispõe o Código de Defesa do Consumidor:

APELAÇÃO CÍVEL. SEGURO DE CARGA. AÇÃO DE COBRANÇA. INAPLICABILIDADE DO CDC. CLÁUSULA DE GERENCIAMENTO DE RISCO DESCUMPRIDA. AGRAVAMENTO DO RISCO. COMPROVADO. VALOR LIMITADOR. DESCABIMENTO. INDENIZAÇÃO INDEVIDA.
  1. A relação jurídica existente entre as partes deve ser regulada pelo Código Civil, eis que a autora, no caso em análise, tem como atividade o transporte de carga, não sendo, portanto, destinatária final dos produtos que adquire ou serviços que contrata, de forma a atrair as disposições do Código de Defesa do Consumidor, servindo o seguro como garantia de seus negócios frente a terceiros. 2. Descumprimento das cláusulas contratuais de gerenciamento de risco. Mesmo que a apelante pudesse optar por acompanhamento ostensivo terrestre (escolta) legalmente habilitado ou sistema de rastreamento que atendesse o estabelecido nas cláusulas contratuais, o fato é que o veículo contava apenas com rastreamento por satélite, sem o monitoramento exigido. 3.Pelo relatório acostado, constata-se que restaram demonstrados o início e fim do rastreamento, não sendo possível, no entanto, se detectar se houve o respectivo monitoramento durante todo o trajeto do veículo, o que afirma a demandada não ter ocorrido, não tendo ocorrido prova técnica, no pertinente. 4.Em que pese o veículo fosse dotado de outro equipamento de segurança, denominado ´isca´, observo que não há como ser considerado suficiente de forma a demonstrar o cumprimento do devido gerenciamento do risco pela apelante, eis que não consta entre os previstos no contrato entabulado entre as partes, em que pese possa, efetivamente, ter auxiliado na localização do veículo, o qual não estava segurado. 5.Descabida a indenização no valor mínimo de R$ 100.000,00, o qual se constitui no sub-limitador específico para a carga transportadora, diante da inexistência de previsão contratual. NEGARAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. UNÂNIME
(TJ-RS – AC: 70079894416 RS, Relator: Eliziana da Silveira Perez, Data de Julgamento: 21/11/2019, Sexta Câmara Cível, Data de Publicação: 26/11/2019)
AÇÃO DE COBRANÇA. SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR. DESCUMPRIMENTO DE CLAÚSULA DE GERENCIAMENTO DE RISCO. AUSÊNCIA DE MONITORAMENTO E RASTREAMENTO. DESCUMPRIMENTO DAS CONDIÇÕES ESTABELECIDAS NA APÓLICE. INDENIZAÇÃO INDEVIDA. INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. HONORÁRIOS RECURSAIS. 
  1. De acordo com o art. 757, caput, do Código Civil, pelo contrato de seguro, o segurador se obriga a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados. Desta forma, os riscos assumidos pelo segurador são exclusivamente os assinalados na apólice, dentro dos limites por ela fixados, não se admitindo a interpretação extensiva, nem analógica. II. Igualmente, no seguro de responsabilidade civil do transportador, como todos os embarques futuros já estão previamente protegidos, a totalidade dos transportes e das mercadorias que o transportador receber deverá ser averbada, com os detalhes necessários à caracterização do risco. É com base nos pedidos de averbação recebidos que a seguradora calcula o prêmio mensal e envia ao transportador para pagamento. III. No caso concreto, contudo, não é devida a cobertura securitária porque a autora não providenciou o monitoramento/rastreamento da carga objeto do roubo, exigência… expressamente prevista no contrato para cargas com valores superiores a R$ 100.000,00. IV. Outrossim, descabido o pleito de limitação da indenização securitária ao montante de R$ 100.000,00, valor para o qual não é exigido monitoramento/rastreamento, eis que houve o agravamento intencional do risco pela segurada, o que acarreta na perda do direito ao recebimento da indenização por completo, na forma do art. 768, do Código Civil. Aliás, o deferimento de tal pedido acabaria por prejudicar os demais segurados que observam as cláusulas contratuais. V. Além do mais, não há falar em abusividade das aludidas cláusulas contratuais com base no Código de Defesa do Consumidor, eis que tal diploma é inaplicável ao caso concreto, já que a autora não é destinatária final dos serviços prestados pela seguradora, pois se utiliza do contrato de seguro para a sua atividade fim (transporte de cargas). VI. De acordo com o art. 85, § 11, do CPC, ao julgar recurso, o Tribunal deve majorar os honorários fixados anteriormente ao advogado vencedor, observados os limites estabelecidos nos §§ 2º e 3º para a fase de conhecimento. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70081144321, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge André Pereira Gailhard, Julgado em 29/05/2019).
(TJ-RS – AC: 70081144321 RS, Relator: Jorge André Pereira Gailhard, Data de Julgamento: 29/05/2019, Quinta Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 31/05/2019)
AÇÃO DE COBRANÇA. Contrato de Seguro. Cláusula contratual que exige gerenciamento de risco com consulta e aprovação de motorista e veículo. Exigência de gerenciamento de risco é condição razoável para o tipo de contrato. Segurada que é empresa que atua no ramo de distribuição de bebidas. Contrato de Adesão. Ausência de abusividade. Autora que não cumpriu com a exigência de gerenciamento de risco por ter autorizado o transporte com motorista não recomendado pela gerenciadora de risco no dia do embarque. Reconhecido, todavia, direito de Indenização da carga até o limite de R$ 80.000,00, na medida em que há cláusula geral que dispensa o segurado de realizar específica manobra de segurança para cargas em valor até R$ 80.000,00. Contrato expressamente prevê a possibilidade de indenização sem a exigência especial para até o limite do valor mencionado. Recurso parcialmente provido para reconhecer direito à indenização limitada ao valor contratual sem exigências especiais. 
(TJSP; Apelação Cível 1037317-64.2014.8.26.0506; Relator (a): Décio Rodrigues; Órgão Julgador: 21ª Câmara de Direito Privado; Foro de Ribeirão Preto – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 04/10/2019; Data de Registro: 04/10/2019)

Diante de tudo isso, primando pela síntese, concluo assim:

  1. Problemas e controvérsias quanto ao contrato de seguro são resolvidos pelas regras de Direito de Seguros, as do Código Civil, não as do Código de Defesa do Consumidor;
  2. O negócio de seguro tem sua própria dinâmica e é anterior ao conceito de relação de consumo. Não se nega que esta se revista de especial proteção do sistema legal, razão pela qual não pode ser aplicada a esmo. Somente o que perfaz relação de consumo é que se submete ao código específico;
  3. Quando se protege o negócio de seguro, protegem-se todos os seus atores, seguradores, corretores de seguros, tomadores, segurados e beneficiários. Protege-se o interesse social que há, direta ou indiretamente, em mantê-lo saudável. Protege-se o mútuo e a sociedade;
  4. Sem se remeter ao casuísmo e ao formalismo pelo formalismo, o contrato de seguro deve ser sempre interpretado restritivamente, segundo o seu clausulado e as regras próprias do contratualismo securitário, sob pena de se desnaturar o negócio em si e tudo o que implica;
  5. Os deveres dos seguradores são desenhados pelo clausulados e suas responsabilidades delimitadas pelos instrumentos contratuais. Nenhum segurador pode ser obrigado a pagar indenização que não corresponda aos riscos e valores previstos.

Observados esses pontos, o seguro se manterá saudável e, com isso, cumprirá 17 sua função, dando a cada um o que é seu sem onerar, indevida e exageradamente, absolutamente ninguém.

 

*Paulo Henrique Cremoneze

É advogado com atuação em Direito do Seguro, sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, parceiro de SMERA-BSI, mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro pela Universidade de Salamanca (Espanha), membro da Academia Nacional de Seguros e Previdência, diretor jurídico do CIST, membro da AIDA e do IASP, presidente do IDT, colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna de Santos, autor de livros jurídicos de Direito do Seguro e de Direito dos Transportes. Coordenador da Cátedra de Transportes da ANSP.

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