Há tempos defendo que as cláusulas de eleição de foro estrangeiro e/ou de compromisso arbitral no instrumento de contrato internacional de transporte marítimo de carga são abusivas, portanto, ilegais, quando não nulas de pleno direito. E quando falo do modo de transporte marítimo internacional, que é o principal do ramo internacional de cargas, falo evidentemente de todos os modos, pois não podem existir cláusulas que impliquem renúncia tácita ao exercício pleno da garantia fundamental de acesso à jurisdição.

O contratante do serviço de transporte e/ou o dono da carga podem escolher com o transportador livremente a jurisdição que melhor lhes convier. Podem preferir a arbitragem como meio veraz de solução de litígios, fazendo assim convergirem direitos e interesses.

Podem e até devem, opino com absoluta franqueza e até algum entusiasmo por jurisdições estrangeiras e pelo uso mais frequente da arbitragem e, antes, da mediação. Repito: podem e devem, desde que a variável “liberdade” não seja suprimida da equação. É de liberdade que se compõe o núcleo da voluntariedade, e a voluntariedade está no centro da eleição de jurisdição estrangeira e de arbitragem em qualquer lugar do mundo.

Como os contratos internacionais de transporte marítimo de carga são, a rigor, de adesão e sem muito espaço para a negociação prévia, formal, desimpedida das partes, não há eleição de foro estrangeiro, e sim imposição; igualmente, não há compromisso arbitral, mas determinação de uma parte à outra.

São raros os contratos em que os contratantes dos transportes e/ou donos de cagas verdadeiramente negociam os clausulados e expressamente optam por foros estrangeiros ou procedimentos arbitrais. Raros, para não dizer raríssimos e quase sempre em transporte de granéis.

A regra é a da imposição abusiva e antijurídica da forma adesiva de contratação. Forma que é a empregada comumente para o fluxo dos negócios mundiais e que em casos de sinistros conta sempre com a Justiça para os devidos reparos, seguindo-se, assim e corretamente, a métrica da visão econômica do Direito e do saudável pragmatismo.

A Justiça endireita aquilo que no mundo dos fatos é costumeiramente torto, e que vige em países com outros interesses econômico-financeiros, outras realidades sociais e gama de visões mais poliédricas em relação aos atores econômicos.

Discussões outras à parte, é certo que a própria Lei de Arbitragem exige forma específica para seu uso em contratos de adesão. É igualmente certo que essa forma não é respeitada pelos transportadores. Tudo é feito ao arrepio da boa forma legal, sem o selo prévio da voluntariedade e distante do que se entende por livre negociação. Resultado? Gravíssima ofensa ao acesso à jurisdição, que é garantia fundamental.

Para além de tudo isso, há algo ainda a ser pesado, medido, valorado e muito bem considerado: a figura singular do segurador sub-rogado.

Válida ou não a cláusula de imposição de foro ou de procedimento arbitral (no Brasil ou no exterior) diante do segurado, tem-se sua mais absoluta ineficácia em relação ao segurador sub-rogado, que costuma ser o grande protagonista dos litígios contra os transportadores marítimos por danos nas cargas. O dono da carga, vítima original do dano causado pelo transportador, reclama do seu segurador a indenização de seguro. O segurador regula os fatos, identifica a cobertura e efetua a indenização. Sub-roga-se nos direitos e ações do segurado (art. 786 do Código Civil) e tem o direito, para não dizer dever, de buscar o ressarcimento em regresso contra o causador do dano (Súmula 188 do Supremo Tribunal Federal).

Ao buscar o ressarcimento em regresso, investido da lei civil e amparado por súmula do Supremo Tribunal Federal, o segurador sub-rogado não defende apenas seus legítimos interesses, mas também os do mútuo, os do colégio universal de segurados, bem como os da sociedade em geral, dada a importância da higidez da saúde do negócio de seguro.

Diante disso, pode esse segurador ser prejudicado em seu direito de regresso por conta de compromissos pessoais do segurado com outrem? A lei é clara ao dizer que não, no §2º do art. 786 do Código Civil. Mesmo assim, as discussões pululam firmemente nos cenários jurídicos.

O segurador sub-rogado não é parte do contrato de transporte, razão simples pela qual não pode ser submetido a seus termos e condições. Seu direito não deriva do inadimplemento da obrigação de transporte, porém da sub-rogação legal, em função do pagamento de indenização ao seu segurado, vítima de dano.Isso é algo sutil, e faz toda diferença. O segurador não é o credor insatisfeito da obrigação de transporte, mas aquele que defende a ortodoxia do negócio de seguro e persegue o lesador pelo mal que fez, pelo prejuízo que causou.

Sai de cena a obrigação de transporte e entra a de seguro. Ancora-se a nau do Direito Marítimo e surge nos mares a do Direito Civil, estendendo as velas da responsabilidade. Um imediato redesenho da situação jurídica que impede a invocação de normas contratuais de transporte e convencionais de Direito Marítimo.

Entra em cena o Direito Civil brasileiro, amparado e empurrado pelo Direito Constitucional, por suas garantias fundamentais, tudo com vistas à preservação do ressarcimento, amplo e integral, a ser exercido na jurisdição brasileira, salvo se o segurador, livremente, por meio de novo negócio, optar por outros portos, praças ou meios. Em que pesem os muitos benefícios da arbitragem e do uso da jurisdição exterior, ninguém é obrigado a um ou a outro, em detrimento de poderosa e inafastável garantia fundamental. Rasgado o selo da voluntariedade, o que seria teoricamente bom pode se converter em simples violência jurídica.

Insisto no caso do segurador sub-rogado, considerando-o especialmente grave, porque este sequer é parte do contrato de transporte, sendo, relativamente à imposição do transportador, espécie de vítima além da vítima.

Com ou sem conhecimento da dinâmica do transporte internacional de carga, o segurador não tem ingerência alguma em seus termos e não pode externar sua vontade até em respeito à autonomia do segurado. O segurador confia, como sempre confiou, que nos casos de crise a solução correta será dada pela Justiça.

Daí a ineficácia de que trata o §2º do art. 786 do Código Civil e que quase sempre é reconhecida pelos Tribunais de Justiça dos Estados e pelo Superior Tribunal de Justiça, como se vê nesse julgado de pouco tempo atrás, da Terceira Turma, com voto magnífico da relatora Nancy Andrighi:

PROCESSO

REsp 1962113 / RJ
RECURSO ESPECIAL
2021/0147460-1

RECORRENTE:WAIVER ARTS LOGÍSTICA DE PRECISÃO LTDA

RECORRIDO :ALLIANZ SEGUROS S/A

RELATORA

Ministra NANCY ANDRIGHI (1118)

ÓRGÃO JULGADOR

T3 – TERCEIRA TURMA

DATA DO JULGAMENTO

22/03/2022

DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE

DJe 25/03/2022

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REGRESSIVA DE RESSARCIMENTO. DANO EM CARGA DURANTE TRANSPORTE INTERNACIONAL. SEGURADORA. SUB-ROGAÇÃO. TRANSMISSÃO DO DIREITO MATERIAL. CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO. MATÉRIA PROCESSUAL. INOPONIBILIDADE À SEGURADORA SUB-ROGADA. CONVENÇÃO DE MONTREAL. SÚMULA 283/STF.

 

  1. Ação regressiva de ressarcimento, ajuizada em 26/06/2018, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 05/02/2020 e concluso ao gabinete em 08/09/2021.
  2. O propósito recursal é decidir (I) se a cláusula de eleição de foro firmada entre a autora do dano e o segurado vincula a seguradora em ação regressiva na qual pleiteia o ressarcimento do valor pago ao segurado em virtude do dano na carga durante transporte internacional; e (II) se a Convenção de Montreal é aplicável à hipótese em julgamento.
  3. De acordo com o art. 786 do CC, depois de realizada a cobertura do sinistro, a seguradora sub-roga-se nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano, nos limites do valor pago.
  4. O instituto da sub-rogação transmite apenas a titularidade do direito material, isto é, a qualidade de credor da dívida, de modo que a cláusula de eleição de foro firmada apenas pela autora do dano e o segurado (credor originário) não é oponível à seguradora sub-rogada.
  5. Tendo o acórdão recorrido decidido pela não aplicação da Convenção de Montreal na hipótese em julgamento, a falta de fundamentação pela recorrente quanto à aplicação da referida Convenção, sem indicar, por exemplo, em qual de seus dispositivos se enquadra a situação fática da presente demanda, enseja a incidência da Súmula 283/STF.
  6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, não provido.

(REsp n. 1.962.113/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22/3/2022, DJe de 25/3/2022.)

Não sem muitos sobressaltos, o assunto estava relativamente tranquilo até o início deste ano, quando houve julgamento importante pela Quarta Turma, num caso em que atuei pela seguradora sub-rogada, cujo resultado foi, em princípio, a favor do reconhecimento da eficácia da cláusula:

PROCESSO

REsp 1988894 / SP
RECURSO ESPECIAL
2022/0060568-4

RECORRENTE:MAPFRE SEGUROS GENERALES DE COLOMBIA S/A

RECORRIDO :LOG WISDOM S/A

RECORRIDO :THORCO SHIPPING A/S

RECORRIDO :ASIA SHIPPING TRANSPORTES INTERNACIONAIS LTDA

RELATORA

Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI (1145)

ÓRGÃO JULGADOR

T4 – QUARTA TURMA

DATA DO JULGAMENTO

09/05/2023

DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE

DJe 15/05/2023

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE TRANSPORTE MARÍTIMO INTERNACIONAL. DANO EM CARGA. AÇÃO REGRESSIVA. SEGURADORA. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA PACTUADA NO CONTRATO DE TRANSPORTE. SEGURO GARANTIA. CIÊNCIA PRÉVIA PELA SEGURADORA DO CONTEÚDO DO CONTRATO A SER GARANTIDO ANTES DA EMISSÃO DA APÓLICE. ART. 4º, § 2º, DA LEI N. 9.307/96. INAPLICABILIDADE. CONTRATO DE ADESÃO NÃO CONFIGURADO. REEXAME DE PROVAS. SÚMULAS 5 E 7/STJ.

  1. A ciência prévia da seguradora a respeito de cláusula arbitral pactuada no contrato objeto de seguro garantia resulta na sua submissão à jurisdição arbitral, por integrar a unidade do risco objeto da própria apólice securitária, dado que elemento objetivo a ser considerado na avaliação de risco pela seguradora, nos termos do artigo 757 do Código Civil.
  2. Nos termos do entendimento desta Corte, o contrato de adesão possui como elementos essenciais a uniformidade, a predeterminação e a rigidez das cláusulas gerais elaboradas unilateralmente, bem como a indeterminação de possíveis aderentes em razão da proposta permanente e geral.
  3. A circunstância de o contrato ser materializado por formulário e a existência de cláusulas padronizadas não implica a necessária conclusão de se tratar de contrato de adesão. Para tanto, cumpre esteja presente a característica de contratualidade meramente formal, vale dizer, que a parte não responsável pela prévia determinação uniforme do conteúdo do contrato tenha meramente aderido ao instrumento, sem aceitar efetivamente as suas cláusulas.
  4. Hipótese em que o Tribunal de origem, soberano na análise do conteúdo fático e contratual, entendeu tratar-se de contrato paritário, em razão do significativo porte econômico da contratante do transporte internacional e do elevado valor do bem transportado, concluindo pela efetiva anuência à cláusula compromissória expressa no contrato.
  5. Rever a inaplicabilidade do artigo 4º, § 2º, da Lei n° 9.307/96 ao contrato em debate esbarraria na vedação de análise cláusulas contratuais e reexame matéria fático-probatória (Súmulas 5 e 7/STJ).
  6. Recurso especial parcialmente conhecido e, na parte conhecida, não provido.

(REsp n. 1.988.894/SP, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 9/5/2023, DJe de 15/5/2023.)

 

O caso ainda está sub-judice e seus desdobramentos são ansiosamente aguardados.

Há aspectos particulares, bem singulares, que foram reconhecidos pelos julgadores e que não cabe aqui discutir em maiores detalhes, até em nome da praticidade e da elegância.

Um deles, por exemplo, é um erro material já apontado por embargos de declaração, pois discutia-se um seguro específico, o de transporte, e a decisão fundou sua análise, de maneira praticamente exclusiva, num seguro com formatação inteiramente distinta.  Depois, afirmou-se, a ciência prévia da existência da cláusula pela seguradora foi decisiva para a decretação de sua eficácia.

Ocorre que essa ciência, em menor ou em maior grau, sempre há, de tal modo que ela não deve, ouso pugnar, ser a medida da solução de litígios, sob pena de se esvaziar a forma da sub-rogação, o conceito de ressarcimento e o teor do §2º do art. 786 do Código Civil.

A seguradora até pode saber que essa é uma cláusula comum, padronizada e que os transportadores colocam sempre. Mas não é porque um abuso se repete que ele ganha validade, sobretudo num mercado em que os transportadores marítimos exercem uma absoluta dominância sobre seus contratantes. Fugindo-se à contratação de um transportador que impõe cláusula arbitral, chega-se a outros que fazem rigorosamente a mesma coisa. Não há escapatória. Ou pelo menos havia uma: o Judiciário.

Dito de outro modo: a seguradora saber que uma cláusula será colocada de todo jeito não significa ela aceitar que isso aconteça. Até porque, sob pena de abusar de sua posição no contrato de seguro, ela não pode obrigar o segurado a mudá-la.

Esse caso, portanto, embora muito importante, não pode ser, ainda que informalmente, considerado precedente maior para o assunto em estudo, uma vez que as singularidades – ressaltadas no julgamento, aliás – impedem que suas razões de decidir sejam adotados em outros litígios. E é o que parece que ocorreu, felizmente, em outro caso emanado no mesmo Superior Tribunal.

Pouco tempo depois, nova decisão da Corte Superior, afastando a cláusula compromissória, reforçou a posição que aqui tanto se defende e que externa a posição majoritária e antiga da Justiça Brasileira (claro, com decisões divergentes).

Fundamentos catequéticos do Ministro Bellizze:

PROCESSO

REsp 2058388

RECORRENTE:RHENUS FREIGHT LOGISTICS

STARR INTERNATIONAL BRASIL SEGURADORA S.A.

 

RELATOR(A)

Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE

DATA DA PUBLICAÇÃO

29/06/2023

 

“RECURSO ESPECIAL Nº 2058388 – SP (2023/0066876-3)

EMENTA: RECURSO ESPECIAL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO REGRESSIVA. SUB-ROGAÇÃO DA SEGURADORA. CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO INTERNACIONAL E ARBITRAGEM.

  1. VIOLAÇÃO AOS ARTS E 489 E 1.022 DO CPC/2015 NÃO CONFIGURADA.
  2. DISPOSITIVOS DE LEI TIDOS COMO VIOLADOS. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO.

SÚMULA 211/STJ. PREQUESTIONAMENTO FICTO. AUSÊNCIA DAS CONDIÇÕES.

  1. CONTRATO DE ADESÃO. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. REQUISITOS DE VALIDADE (ART. 4º, § 2º, DA LEI Nº 9.307/1996). ILEGALIDADE EVIDENTE.

ANÁLISE PRÉVIA PELO PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTATAL. PRECEDENTES DESTA CORTE. SÚMULA 83/STJ. 4. REVISÃO DO JULGADO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULAS 5 E 7 DO STJ. 5. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, DESPROVIDO.

DECISÃO

Trata-se de recurso especial interposto por RHENUS FREIGHT LOGISTICS, com fundamento no art. 105, III, a, da Constituição Federal, contra acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo assim ementado (e-STJ, fl. 716):

Apelação Cível. Ação regressiva. Sub-rogação da seguradora. Sentença de extinção sem resolução do mérito. Inconformismo da autora.

Cláusula de eleição de foro internacional e arbitragem. Inteligência do artigo 25 do CPC. Soberania. Autolimitação da jurisdição do Estado Brasileiro. Mitigação. Competência da autoridade judiciária brasileira na verificação de haver legalidade e eficácia da eleição de foro estrangeiro no negócio jurídico. Hipótese dos autos que, por vícios na formulação de vontade, não afasta aplicação da jurisdição nacional. Ato jurídico que abriga a extensão da autoridade brasileira para conhecer do litígio. Inteligência do artigo 21 do CPC. Competência da jurisdição brasileira para julgamento da causa reconhecida. Cláusula de arbitragem. Resolução de conflitos por arbitragem só obriga as partes contratantes e não terceiros.

Extinção afastada. Causa madura. Imediato julgamento do mérito neste momento processual. Artigo1.013, §3º, I, do Código de Processo Civil. Direito de regresso. Sub-rogação da seguradora, ante o pagamento da indenização à segurada. Responsabilidade objetiva da ré. Perda total das mercadorias. Dever da transportadora pagar o valor sub-rogado. Sentença reformada. Ação julgada procedente.

Sucumbência exclusiva da ré. Recurso provido.

Os embargos de declaração opostos foram rejeitados (e-STJ, fls. 772-777).

Em suas razões de recurso especial (e-STJ, fls. 780-814), a recorrente alega violação dos arts. 4º, § 2º, da Lei 9.307/1996; 9º e 13 da LINDB; 423, 733, 749, 750, 756 e 786 do CC/2002; e 17, 21, 25, 313, V, a, 485, VI, 1.013, §§ 1º e 2º, e 1.014 do CPC/2015.

Insurge-se, em síntese, contra a conclusão do Tribunal de origem que, diante da existência de cláusula arbitral com eleição de foro internacional, reconheceu a competência do juízo estatal brasileiro para dirimir o litígio e julgou procedente a ação.

Assim, aponta, inicialmente, que o acórdão recorrido foi omisso, pois não se manifestou a respeito das questões suscitadas nos aclaratórios, imprescindíveis para a solução da controvérsia.

Defende, ainda, as seguintes teses: a) inovação recursal, ante a apreciação de questão não proposta no juízo inferior; b) ausência de observância da legislação estrangeira para qualificar e reger as obrigações e a prova dos fatos ocorridos em país estrangeiro; c) incompetência da autoridade judiciária brasileira para dirimir o litígio; d) equivocado afastamento do foro de eleição e da jurisdição arbitral, ante a inaplicabilidade da lei brasileira e a inexistência de contrato de adesão; e) ausência de interesse processual decorrente da pendência de demanda idêntica perante a justiça americana; f) inobservância da necessidade de suspensão do processo por questão prejudicial externa; e g) não configuração da responsabilidade da recorrente pelos danos alegados na demanda.

Foram apresentadas contrarrazões (e-STJ, fls. 835-849).

O Tribunal de origem admitiu o recurso especial (e-STJ, fls. 850-851).

Brevemente relatado, decido.

No apelo excepcional, a primeira tese defendida pela recorrente refere-se à existência de omissão no acórdão impugnado.

A respeito do tema, é preciso esclarecer qu e os embargos de declaração possuem fundamentação vinculada, cujo objetivo é sanear a decisão eivada de obscuridade, contradição, omissão ou erro material (art. 1.022 do CPC/2015), não possuindo, por isso, natureza infringente.

Nesse sentido, a jurisprudência desta Corte Superior é pacífica ao proclamar que, se os fundamentos adotados bastam para justificar o concluído na decisão, o julgador não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos utilizados pela parte (REsp 1.873.918/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 02/03/2021, DJe 04/03/2021).

Desse modo, tendo o Tribunal a quo motivado adequadamente sua decisão, solucionando a controvérsia com a aplicação do direito que entendeu cabível à hipótese, não há que se afirmar que a Corte estadual omitiu-se apenas pelo fato de ter o aresto impugnado decidido em sentido contrário à pretensão da parte.

Analisando os autos, não se evidencia a existência da omissão e da contradição apontadas, porquanto decididas, clara e devidamente fundamentadas, as questões submetidas a julgamento pela parte embargante, sobretudo no que diz respeito à impossibilidade de se analisar a demanda pelo juízo estatal ante a cláusula compromissária assumida pelas litigantes.

Portanto, apresentando o Tribunal originário os fundamentos pelos quais chegou à conclusão dos fatos expostos nos autos, inexiste violação aos arts. 489 e 1.022 do CPC/2015.

Nesse toar, ao julgar a apelação, verifica-se que a Corte estadual destacou as seguintes particularidades do caso concreto (e-STJ, fls. 718-730):

Cuida-se de ação regressiva, em que a seguradora, autora, pretende receber da transportadora ré o ressarcimento do valor de R$ 1.593.727,39, que se refere ao pagamento de indenização que efetuou à sua segurada, que a contratara e de quem se sub-rogou nos direitos para a cobrança do autor do dano, por conta da perda total na carga enquanto a apelada realizava o transporte.

A ação foi julgada extinta sem julgamento do mérito, por reconhecimento da validade e existência do compromisso arbitral, razão pela qual a autora se insurge.

Anotado o respeito ao entendimento firmado pelo juízo “a quo”, firmo compreensão distinta em relação à questão da incompetência absoluta da jurisdição nacional para conhecer da demanda, seja sob a ótica da eleição de foro estrangeiro, como constou do contrato, ou mesmo da solução das divergências por meio de Arbitragem em foro estrangeiro, como também constou eleito no contrato, e o afirmo assim ainda que estivesse no polo passivo a segurada (contratante) e não a seguradora.

Pois, não se haveria de fugir da reservada autoridade brasileira judiciária fazer a devida leitura quanto à situação escapar da competência brasileira.

Vejamos.

De fato, dita o artigo 25 do CPC, “Não compete à autoridade judiciária brasileira o processamento e o julgamento da ação quando houver cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro em contrato internacional, arguida pelo reúna contestação”.

E, em princípio, por estar inserida no livro II, capítulo I, Dos limites da Jurisdição Nacional, CPC/2015, não integra essa regência matéria de competência, mas, sim, de jurisdição do Estado Brasileiro.

Uma opção discricionária de nosso legislador, sem que tal interfira na soberania nacional no que diz às normas precedentes em torno da competência da autoridade judiciária brasileira no novo Código de Processo Civil.

Explico. Confere-se na doutrina de Dalmo de Abreu Dallari (“Elementos de Teoria Geral do Estado”, 25ªed., 2006, Editora Saraiva), ao cuidar das teorias em torno da soberania, com a citação de Léon Duguit (Leçons de Droit Public Général, pág. 116), ela conteria, entre outras, as seguintes características: “a) é um poder de vontade comandante, sendo este o seu aspecto principal. A vontade soberana é, em essência, superior a todas as demais vontades que se encontrem no território submetido a ela; b) é um poder de vontade independente, o que se aproxima da característica de poder incondicionado. A preocupação de Duguit, ao mencionar o poder de vontade independente, dirige-se mais ao âmbito externo do Estado, pois, segundo ele, o poder soberano não admite que qualquer convenção internacional seja obrigatória para o Estado, o que torna inviável a existência de um direito internacional. A resposta a essa crítica de Duguit é dada pelo que se convencionou chamar de teoria de autolimitação do Estado, pela qual este, desde que o entenda conveniente, pode assumir obrigações externas, como pode fixar regras jurídicas para aplicação interna, sujeitando-se voluntariamente às limitações impostas por essas normas. O primeiro grande defensor dessa teoria foi Ihering, que a justificava argumentando que, na verdade, essas limitações não implicam diminuição, uma vez que o Estado se sujeita a elas no seu próprio interesse”.

Que a respeito, digo, porém, conforme o § 2º do artigo 25 do CPC, uma autolimitação de jurisdição mitigada, porque não retira da autoridade judiciária brasileira conhecer e analisar a eleição de foro ou da arbitragem estabelecida no negócio jurídico quanto à sua legalidade e declará-la ineficaz, se o caso, e repor as partes às regras de competência interna do nosso estatuto processual.

Naturalmente, assim estipulado na norma para evitar eventual burla a essa autolimitação deliberada de jurisdição quanto à competência da autoridade judiciária brasileira, quando efetiva essa subtração por desejo não confessado pelos contratantes ou por uma das partes, em conveniência unilateral de atingir nossa soberania interna de jurisdição, se e quando envolver questões que, à margem o foro de eleição, gravitam em torno de matérias reguladas pelo artigo 21 do CPC.

É o caso do constante do contrato traduzido (fls. 311/323), cujas cláusulas 16 e 17 trazem a eleição de foro estrangeiro e arbitragem.

A rigor, trata-se de contrato de adesão. E não há afastar, a estipulação de cláusula de arbitragem(cláusula 17),por não conter foro exclusivo, por paralelo também contemplar a Justiça comum estrangeira, não desce à norma do “caput” do artigo 25 do Código de Processo Civil, como mesmo, em função do artigo 423 do CC (“Quando houver no contrato de adesão cláusula ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”), conforme a doutrina de Gustavo Tepedino e outros (“Código Civil Interpretado”, Vol. II, 2ª edição revista, Renovar, págs. 23/28),em caso concreto, “Torna-se necessário, pois, à luz deste art.423 do CC, que se verifique ambiguidade ou contraditoriedade nas cláusulas de um contrato para que tal patologia seja sanada por meio do remédio prescrito pelo legislador, qual seja, a interpretação contra o estipulante. As noções são quase intuitivas: enquanto a ambiguidade pressupõe duas interpretações possíveis no âmbito de uma mesma cláusula, a contraditoriedade é suscitada pela multiplicidade de interpretações decorrente de cláusulas distintas”.

Além do mais, sem a participação e vontade da contratante na elaboração do foro de eleição, a estipulação, como posta, com duplicidade de escolha do foro de eleição, e a critério único da vontade do transportador, traz ínsita a sua ilicitude e a nulidade.

Conforme entendimento do Colendo Superior Tribunal de Justiça, verificada a natureza jurídica de contrato de adesão, cabe ao juízo estatal analisar a eficácia da cláusula compromissória, à luz do art. 4º, §2º, da Lei nº 9.307/1996, para fins de afastamento de eventual cláusula patológica (STJ. AgInt no REsp 1773599/PE, Rel. Min. PAULODE TARSO SANSEVERINO, 3ª Turma, j. 26/10/2020; AgInt no AgInt no REsp 1431391/SP, Rel. Min. ANTONIO CARLOSFERREIRA, 4ª Turma, j. 20/04/2020).

“Com a promulgação da Lei de Arbitragem, passaram a conviver, em harmonia, três regramentos de diferentes graus de especificidade:

(i) a regra geral, que obriga a observância da arbitragem quando pactuada pelas partes; (ii) a regra específica, aplicável a contratos de adesão genéricos, que restringe a eficácia da cláusula compromissória; e (iii) a regra ainda mais específica, incidente sobre contratos sujeitos ao CDC, sejam eles de adesão ou não, impondo a nulidade de cláusula que determine a utilização compulsória da arbitragem, ainda que satisfeitos os requisitos do art. 4º, §2º, da Lei nº 9.307/96” (trecho do voto da Exma. Relª.

Minª. NANCY ANDRIGHI).

No caso concreto, por efeito do posto, a nulidade da cláusula de eleição de foro e de arbitragem é aferível de plano, porquanto prejudica a defesa da apelante, além de tudo o que já me permiti pontuar a respeito.

E não havendo falar em incompetência territorial para o caso, também as cláusulas de eleição de foro e de arbitragem não são oponíveis em ação fundada em sub-rogação de seguradora.

Nesse sentido, é o entendimento do C. STJ:

(…)

Portanto, uma vez reconhecida a competência da justiça brasileira para julgamento do feito, deve ser revogado o decreto de extinção do processo sem resolução de mérito, e, já estando a causa madura, passa-se ao imediato julgamento do seu mérito neste momento processual, nos termos do artigo 1.013, § 3º, I, do Código de Processo Civil.

Como se sabe, a responsabilidade objetiva do transportador decorre do artigo 749, do Código Civil, sendo desnecessária a demonstração de culpa da ré pelas avarias.

Além disso, o artigo 750 do mesmo diploma legal, dispõe sobre a cláusula de incolumidade inerente ao contrato de transporte de coisas: “A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrado”.

Portanto, a responsabilidade do transportador só se encerra com a entrega ao destinatário, respondendo por toda e qualquer avaria que a carga sob sua responsabilidade sofrer.

Ainda, o artigo 756 do CC dispõe que: “No caso de transporte cumulativo, todos os transportadores respondem solidariamente pelo dano causado perante o remetente, ressalvada a apuração final da responsabilidade entre eles, de modo que o ressarcimento recaia, por inteiro, ou proporcionalmente, naquele ou naqueles em cujo percurso houver ocorrido o dano”.

Neste ponto, a ré não nega a participação no transporte, nem a ocorrência do acidente que ocasionou a perda total da mercadoria, apenas afirma que seu contrato com o segurado foi de logística e não de transporte em si.

E como dito acima, a responsabilidade do transportador é objetiva e se inicia quando este recebe a carga para transporte, vindo a terminar quando da entrega ao destinatário, sendo obrigação indelével da transportadora a entrega ao destino no estado em que recebido, respondendo por quaisquer avarias, salvo comprovada ocorrência de excludente de responsabilidade, o que não ocorreu.

É sabido também que a responsabilidade da ré, que atuou no contrato de transporte como operadora logística, é objetiva, tanto é que a custódia das mercadorias se qualifica como a principal obrigação do depositário, incumbindo-lhe guardar e conservar as mercadorias que lhe são confiadas com cuidado e diligência.

Assim, restou incontroverso nos autos que a ré foi contratada para fazer a logística do transporte da mercadoria da empresa WestCon dos EUA até o Brasil e que a mercadoria não chegou ao destino em razão do acidente ocorrido com o caminhão que transportava as mercadoras, na cidade de Houston/EUA. E, não havendo nenhuma das hipóteses de exclusão da responsabilidade, cabe à ré ressarcir a seguradora, ficando reservado o direito de regresso perante a efetiva causadora dos danos ou sinistro.

Portanto, à vista destas considerações, reforma-se a sentença, para julgar procedente a ação, condenando-se a ré a pagar à seguradora o valor apontado na inicial, devidamente corrigido pela Tabela Prática do Tribunal de Justiça desde a data da sub-rogação com o pagamento à segurada, e juros de mora de 1% ao mês desde a citação.

Consta, ainda, dos aclaratórios (e-STJ, fls. 775-777):

Realmente, o entendimento que se passou foi o de que a Justiça Brasileira é competente para julgamento do feito e que, a ré, como parte da cadeia de fornecimento da prestação de serviço de transporte, responde, de forma objetiva pelo defeito desta prestação de serviço, cabendo, a ela, portanto, o ressarcimento dos prejuízos alegados na inicial, ficando reservado o direito de regresso perante a efetiva causadora dos danos ou sinistro.

Como se depreende das razões expendidas no acórdão recorrido, constata-se que as matérias alusivas aos arts. 9º e 13 da LINDB; e 17, 313, V, a, 485, VI, 1.013, §§ 1º e 2º, e 1.014 do CPC/2015, da forma em que foram apresentadas no apelo excepcional, não foram objeto de apreciação pelo Tribunal estadual, caracterizando-se a ausência de prequestionamento a atrair a incidência da Súmula 211/STJ.

Assim, para que se configure o prequestionamento das matérias, há que se extrair do acórdão recorrido pronunciamento sobre as teses jurídicas em torno dos dispositivos legais tidos por vulnerados, a fim de que se possa, na instância especial, abrir discussão sobre determinada questão de direito, definindo-se, por conseguinte, a correta interpretação da legislação federal.

Assim sendo, como não houve manifestação pela Corte local acerca das referidas questões, foi desatendido o requisito do prequestionamento.

Cumpre registrar que não se desconhece ter o Código de Processo Civil de 2015, no art. 1.025, disciplinado a possibilidade de prequestionamento ficto de tese jurídica, quando – a despeito da oposição de embargos de declaração – o Tribunal estadual não se manifesta acerca do tema, considerando-se inclusas no aresto as questões deduzidas pela parte recorrente nos aclaratórios.

Contudo, o Superior Tribunal de Justiça, intérprete da legislação federal, possui jurisprudência assentada no sentido de que o prequestionamento ficto só pode ocorrer quando, na interposição do recurso especial, a parte recorrente tiver sustentado violação ao art. 1.022 do CPC/2015 e esta Corte Superior houver constatado o vício apontado, o que não ocorreu na hipótese.

Na mesma linha de cognição:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. ART. 1.022 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015.

OMISSÃO. AUSÊNCIA. PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA Nº 211/STJ.

INDENIZAÇÃO. DANOS MATERIAIS E MORAIS. NÃO CABIMENTO. NEGLIGÊNCIA E IMPERÍCIA. DEMONSTRAÇÃO. AUSÊNCIA. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA Nº 7/STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL PREJUDICADO.

  1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
  2. A controvérsia dos autos reside no reconhecimento de indenização por danos materiais e morais por alegado erro médico, devido ao tipo de anestesia utilizada no procedimento de cirurgia bariátrica do paciente.
  3. No caso, ausente violação do art. 1.022 do CPC/2015, visto que agiu corretamente o tribunal de origem ao rejeitar os embargos de declaração por inexistir omissão, contradição, obscuridade ou erro material no acórdão atacado, ficando patente o intuito infringente da irresignação.
  4. A ausência de discussão pelo tribunal local acerca da tese ventilada no recurso especial (arts. 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor, 422 do Código Civil e 22, 24, 31 e 34 do CFM) acarreta a falta de prequestionamento, atraindo a incidência da Súmula nº 211/STJ.
  5. A admissão de prequestionamento ficto (art. 1.025 do CPC/2015), em recurso especial, exige que no mesmo recurso seja indicada e reconhecida a violação do art. 1.022 do CPC/2015 para que se possibilite ao Órgão julgador verificar a existência do vício inquinado ao acórdão, que, uma vez constatado, poderá dar ensejo à supressão de grau facultada pelo dispositivo de lei.
  6. Na espécie, rever a conclusão da Corte de origem – no sentido de que não foram configurados danos materiais e morais – demandaria o revolvimento do acervo fático-probatório carreado nos autos, procedimento obstado pelo disposto na Súmula nº 7/STJ.
  7. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça preleciona que a necessidade de reexame de matéria fática impede a admissão do recurso pelo dissídio jurisprudencial.
  8. Agravo interno não provido.

(AgInt no AREsp n. 2.029.476/RJ, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 6/3/2023, DJe de 10/3/2023.)

Não há falar, pois, em prequestionamento ficto.

Em relação a questão de fundo, como se observa das razões expendidas, o acórdão recorrido adotou solução em consonância com o entendimento desta Corte no sentido de que cabe ao Poder Judiciário, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral claramente ilegal, declarar a nulidade dessa cláusula.

A propósito (sem destaques no original):

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL E DE INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS. CONTRATO DE FRANQUIA. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTATAL.

CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. INVALIDADE. CONTRATO DE ADESÃO.

INOBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS DO ART. 4º, § 2º, DA LEI 9.307/96.

  1. Ação ajuizada em 22/5/2017. Recurso especial interposto em 28/5/2018. Autos conclusos ao Gabinete em 11/2/2019.
  2. O propósito recursal é definir se é válida a cláusula compromissória prevista no contrato de franquia entabulado entre as partes.
  3. Devidamente analisadas e discutidas as questões deduzidas pelas partes, não há que se cogitar de negativa de prestação jurisdicional, ainda que o resultado do julgamento contrarie os interesses dos recorrentes.
  4. Segundo entendimento do STJ, cabe ao Poder Judiciário, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral ‘patológico’, i. e., claramente ilegal, declarar a nulidade dessa cláusula.
  5. Os contratos de franquia, mesmo não consubstanciando relação de consumo, devem observar o que prescreve o art. 4º, § 2º, da Lei 9.307/96, na medida em que possuem natureza de contrato de adesão.

Precedentes.

  1. Hipótese concreta em que à cláusula compromissória integrante do pacto firmado entre as partes não foi conferido o devido destaque, em negrito, tal qual exige a norma em análise; tampouco houve aposição de assinatura ou de visto específico para ela. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.(REsp 1803752/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/02/2020, DJe 24/04/2020) EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM AGRAVO INTERNO. CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA. IMÓVEL ADQUIRIDO EM EMPREENDIMENTO HOTELEIRO. CDC.

APLICABILIDADE. SÚMULA 7/STJ. CONTRATO DE ADESÃO. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. REQUISITOS DE VALIDADE (ART. 4º, § 2º, DA LEI Nº 9.307/96). ILEGALIDADE EVIDENTE. ANÁLISE PRÉVIA PELO PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTATAL. PRECEDENTES DESTA CORTE. SÚMULA 83/STJ. EMBARGOS PARCIALMENTE ACOLHIDOS SEM EFEITOS INFRINGENTES.

  1. Nos casos de contrato de adesão, ainda que não regidos pelo CDC, há disposição restritiva explicitada pela própria Lei de Arbitragem, estabelecendo que o “magistrado pode analisar a alegação de ineficácia da cláusula compromissória por descumprimento da formalidade do art. 4º, § 2º, da Lei n. 9.307/1996, independentemente do estado do procedimento arbitral. Precedente:

REsp 1.602.076/SP, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/9/2016, DJe 30/9/2016″ (AgInt no AgInt no REsp n. 1.431.391/SP, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 20/4/2020, DJe de 24/4/2020).

  1. Embargos de declaração parcialmente acolhidos, sem efeitos infringentes.

(EDcl no AgInt no REsp n. 1.641.672/MG, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 5/6/2023, DJe de 9/6/2023.

) Dessa forma, a solução adotada está em conformidade com o entendimento sedimentado na jurisprudência do STJ, nos termos do que dispõe a Súmula n. 83 desta Corte Superior.

Sob outra perspectiva, a revisão do julgado recorrido, sobretudo em relação à presença de responsabilidade civil da ora recorrente, por ser parte da cadeia de fornecimento da prestação de serviço de transporte, existência de contrato de adesão ou, para alterar a conclusão da Corte estadual no sentido de que “sem a participação de vontade da contratante na elaboração do foro de eleição, a estipulação, como posta, com duplicidade de escolha do foro de eleição e a critério único da vontade do transportador, traz ínsita a sua ilicitude e a nulidade”, exigiria o revolvimento das cláusulas contratuais e das circunstâncias de fato pertinentes ao caso, o que não se admite em recurso especial, diante da aplicação das Súmulas n. 5 e 7 desta Corte.

Ante o exposto, conheço em parte do recurso especial e, nessa extensão, nego-lhe provimento.

Nos termos do art. 85, § 11, do CPC/2015, majoro os honorários em favor do advogado da parte recorrida em 2% sobre o valor atualizado da condenação.

Fiquem as partes cientificadas de que a insistência injustificada no prosseguimento do feito, caracterizada pela apresentação de recursos manifestamente inadmissíveis ou protelatórios contra esta decisão, ensejará a imposição, conforme o caso, das multas previstas nos arts. 1.021, § 4º, e 1.026, § 2º, do CPC/2015.

Publique-se.

Brasília, 27 de junho de 2023.

MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator

(REsp n. 2.058.388, Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe de 29/06/2023.)”

Os fundamentos desse voto são catequéticos e externam bem conceitos importantes, próprios do Direito do Seguro.

De fato, não pode o segurador sub-rogado ser prejudicado na busca do ressarcimento contra o causador do dano por conta de imposição de um contrato do qual não faz parte, com ou sem ciência prévia de tanto. É justamente para que situações erradas como essa sejam corrigidas, já que os transportadores não o farão espontaneamente, que a mão forte e prudente da Justiça é chamada.

Nessa decisão, o Ministro foi muito feliz ao tratar da natureza jurídica da sub-rogação, dos seus efeitos e amplitude e da força invulgar do ressarcimento em regresso, reconhecendo a autonomia do direito da seguradora em relação ao contrato de transporte, do qual, nunca é demais dizer, ela não é parte.

Há, então, três decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça, um com resultado diferente, todas muito bem fundamentadas e que expõem que o tema ainda consumirá tempo e debates até um adernamento específico.

Espero sinceramente que prevaleça o entendimento pelo que advogo, porque acredito ser bastante justo e o único que que viabiliza ramos bem importantes do Direito no Brasil.

*Paulo Henrique Cremoneze
É advogado com atuação em Direito do Seguro, sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, parceiro de SMERA-BSI, mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro pela Universidade de Salamanca (Espanha), membro da Academia Nacional de Seguros e Previdência, diretor jurídico do CIST, membro da AIDA e do IASP, presidente do IDT, colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna de Santos, autor de livros jurídicos de Direito do Seguro e de Direito dos Transportes. Coordenador da Cátedra de Transportes da ANSP.

Esta publicação online se destina a divulgação de textos e artigos de Acadêmicos que buscam o aperfeiçoamento institucional do seguro. Os artigos expressam exclusivamente a opinião do Acadêmico.

Expediente – Diretor de Comunicações: João Alfredo Di Girolamo | Conselho Editorial: Edmur de Almeida l Felippe Moreira Paes Barretto l Goldete Priszkulnik l Homero Stabeline Minhoto l João Marcelo dos Santos l Rogério Vergara l Produção: Oficina do Texto | Jornalista responsável: Paulo Alexandre | Endereço: Alameda Santos 2335 – 11º andar, conjunto 112 – Cerqueira César – São Paulo – SP – CEP 01419-002 | Contatos: (11)3335-5665| secretaria@anspnet.org.br | anspnet.org.br |