Parece óbvio recordar que a matéria relativa às operações de seguro não passou desapercebida do legislador constituinte. Além das previsões contidas na redação original do art. 192 (com incisos já revogados hoje), foi claramente atribuída a competência da União Federal em tratar dos temas relativos à atividade securitária.
Vale registrar neste ponto que, no critério de repartição de competências fixados pela Constituição de 1988, há uma previsão expressa de que determinadas matérias seriam postas no campo das atribuições de uma só das pessoas políticas, sendo esta usualmente denominada como competência privativa.
Como dito, encontramos as matérias de competência privativa da União no artigo 22, interessando-nos, sobremaneira, o inciso VII, in verbis:
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: … omissis ….
VII – política de crédito, câmbio, seguros e transferências de valores; (…)
XIX – sistemas de poupança, captação e garantia da poupança popular;”
Além da competência legislativa – e por natural coerência lógica – os exercícios das funções executivas foram igualmente colocados nas esferas de atribuições exclusivas federais, na forma do art. 21:
Art. 21. Compete à União: (…)
VIII – administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada;
Mesmo quanto às competências de tributação e ainda em razão da mesma unidade de tratamento constitucional, as atividades de seguros foram mantidas na esfera federal, com a conhecida submissão das operações de seguro no âmbito da exação prevista no art. 153, V, conhecido como Imposto sobre Operações Financeiras – IOF.
Resultado de tal obviedade na interpretação constitucional é a impossibilidade, em tese, de abordagem direta das atividades de seguro por meio de atos estaduais ou municipais, inclusive quanto a vedação edição de lei elaborada pela Assembleia Legislativa estadual ou Câmara de Vereadores municipais.
Ainda que tal conclusão pareça natural, na vida nacional a prática não é tão simples assim já que os temas de direito econômico e produção e consumo, por exemplo, foram insertos na competência concorrente do art. 24 constitucional. Diante da unicidade do ordenamento jurídico tais fronteiras não são simples de serem determinadas, tendo a história nacional já registrados casos em que os estados e os Municípios, sob a pretensão de tratar de relação de consumo ou temas de direito econômico, adentram na temática securitária.
Mas, uma vez que reste claro que não eventual ato estadual ou municipal não se limitaria a questões de consumo, a referida atuação ou mesmo eventual diploma normativo, na verdade, se subsumiria na competência legislativa federal por versar sobre matéria de pano de fundo securitário (art. 22, VII e XIX CRFB).
Tal aspecto, inclusive, não é novo sequer no cenário constitucional levado ao Supremo Tribunal Federal que, reiteradamente como verdadeiro guardião das balizas constitucionais, percebe um extrapolar das funções estaduais ou municipais para, além de tratar das relações consumeristas, avança ao campo das atividades de seguro:
Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 11.265/02 do Estado de São Paulo. Seguro obrigatório. Eventos artísticos, desportivos, culturais e recreativos com renda resultante de cobrança de ingressos. Inconstitucionalidade formal. Competência privativa da União.
- Lei estadual nº 11.265/02, que instituiu a obrigatoriedade de cobertura de seguro de acidentes pessoais coletivos em eventos artísticos, desportivos, culturais e recreativos com renda resultante de cobrança de ingressos. Competência privativa da União para legislar sobre Direito Civil, Direito Comercial e política de seguros (CF, art. 22, I e VII).
- Não se trata de legislação concernente à proteção dos consumidores (CF, art. 24, inciso VII, §§ 1º e 2º), de competência legislativa concorrente dos estados-membros, pois a lei impugnada não se limita a regular as relações entre os consumidores e os prestadores de serviço, nem a dispor sobre responsabilidade por dano ao consumidor. Na verdade, cria hipótese de condicionamento da realização de alguns espetáculos ou eventos à existência de contrato de seguro obrigatório de acidentes pessoais coletivos.
- Não obstante a boa intenção do legislador paulista de proteger o espectador, a lei do Estado de São Paulo criou nova modalidade de seguro obrigatório, além daquelas previstas no art. 20 do Decreto-Lei federal nº 73/66 e em outros diplomas federais, invadindo a competência privativa da União para legislar sobre direito civil, direito comercial e política de seguros (CF, art. 22, I e VII).
- Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.
(STF – ADI 3402, rel. Min. Dias Toffoli, j. em 11.12.2015) – grifos nossos
O controle jurisdicional, neste caso, ainda traz um outro elemento de reforço para evitar a invasão de competência federal ao mencionar as competências da União para o direito civil e comercial.
Tal reprimenda constitucional inclusive não é nova no histórico da corte que, de vez em quando, se depara com medidas legislativas aprovadas pela Assembleia Estadual do Rio de Janeiro invadindo a competência privativa em matéria de seguros, como se ilustra:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 8.182/2018 DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. FEDERALISMO. REGRAS DE COMPETÊNCIA. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA DISPOR SOBRE DIREITO CIVIL E SEGUROS (CF, ART. 22, I E VII). PRECEDENTES. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
I – É característica do Estado Federal a repartição de competências entre os entes políticos que o compõem, de modo a preservar a diversidade sem prejuízo da unidade da associação.
II – A norma impugnada padece de vício de inconstitucionalidade pois invadiu a atribuição do Congresso Nacional para legislar sobre Direito Civil e Seguros, prevista no art. 22, I e VII, da Constituição.
III – Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei 8.182/2018 do Estado do Rio de Janeiro.
(STF – ADI 6153, rel. Min. Ricardo Lewandoski, j. em 8.2.2022)
Apesar de todo este histórico e de todos os exemplos já estabelecidos, recentemente as assembleias estaduais de várias unidades federadas passaram a dispor sobre a relação dos integrantes em entidades civis que se constituem para oferecer proteção veicular para os seus associados ou cooperados.
Sem prejuízo da motivação aparente ser o estabelecimento de mecanismos de proteções para os associados e cooperados, ignoraram as casas legislativas que a matéria ali também tangenciava as atividades de seguro, sobretudo diante da posição consolidada de que a Superintendência de Seguros Privados reconhecendo, nas citadas operações de proteção veicular, as características da atividade securitária.
Não penderia dúvidas quanto a impossibilidade de subsistência de lei estadual que tangencie a aspectos da materialização de seguro ou cobertura securitária, ainda que aparentemente legislado com o pretexto de estabelecer meios de proteção aos consumidores.
Tal aspecto jurídico-formal, por si só, já merecia a posição clara dos mecanismos de controle da constitucional. E assim não poderia ser diferente, tanto é que a Suprema Corte não tardou em reconhecer a impropriedade dos diversos diplomas legislativos estaduais.
A questão foi concluída com a seguinte decisão, no caso da lei fluminense:
Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei 9.578, de 2 de março de 2022, do Estado do Rio de Janeiro. Proteção ao consumidor filiado às associações e cooperativas de autogestão de planos de proteção contra riscos patrimoniais nos Estado do Rio de Janeiro.
- Normas sobre a comercialização de seguros por entidades que não se submetem ao regime jurídico securitário. Invasão da competência privativa da União para legislar em matéria de seguros e sistema de captação da poupança popular (art. 22, VII e XIX, da Constituição Federal). Invasão da competência da União para fiscalizar o setor de seguros (art. 21, VIII, da Constituição Federal).
- Norma estadual que disciplina sobre associações civis com propósitos específicos, de natureza econômica. Invasão da competência da União para legislar em matéria de direito civil (art. 22, I, da Constituição Federal).
- Precedentes do STF.
- Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei 9.578, de 2 de março de 2022, do Estado do Rio de Janeiro.
(STF – ADI nº 7,151, rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 3.5.2023, DJe 19.5.2023)
Naquele mesmo momento, a ADI nº 6,752 reconheceu o vício de inconstitucionalidade da Lei estadual nº 20.894/2020 de Goiás. E, mais recentemente, a lei do estado de Minas Gerais que permitia as chamadas APVs (Associações de Proteção Veicular) foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Agora, por unanimidade, os ministros do STF votaram contra a lei estadual nº 23.993/2021, tudo na forma da ADI nº 7.099 em Sessão Virtual do Plenário de 4 a 14 de agosto de 2023.
Nestes casos apreciados em 2023 ainda restou pacificado que “norma que, a pretexto de proteger os consumidores, disciplina atividade regulada pela União é formalmente inconstitucional” – já com vários precedentes – reforçando a competência da União Federal para disciplinar, como um todo, as atividades de seguros privados.
*Irapuã Beltrão
Graduado em Direito, passou no concurso de Procurador da SUSEP com 23 anos, exercendo a função até hoje como Subprocurador Chefe de Consultoria e Assuntos Societários. Atuou ainda como Gerente Geral de Normas e Análise de Mercados e Diretor Substituto na ANS de 2002 a 2006. Mestre em Insurance Law pela University of Connecticut e Doutor em Direito. Professor da Escola de Negócios e Seguros – ENS no Rio de Janeiro e também da FGV, do Ibmec e da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro – Emerj. Acadêmico da ANSP desde 2018.
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