É certo que as novidades digitais e o avanço tecnológico afetam a todas as relações sociais e jurídicas, é igualmente certo que algumas atividades tem as suas estruturas mais sofisticadas por tal aspecto ou sofrem com maiores demandas. Justo com estas, emergem variadas preocupações pelos profissionais que atuam naqueles segmentos. A atividade de seguro e os respectivos contratos trilham este caminho de máxima mutação na era digital.
Nunca é demais recordar que, no contido do art. 1433 Código Civil 1916, era o contrato de seguro obrigado a ser escrito, tendo a doutrina de época debatido bastante se tal forma era da própria essência do negócio jurídico ou apenas para os fins de prova. A redação trazida pelo código de 2002 não deixou dúvidas quanto a isto, ainda que se mantenha no art. 758 a referência aos documentos típicos da relação securitária. Por outro lado, para os fins de uma atualização legislativa restaria ainda a necessidade de modernização do marco legal do Sistema Nacional de Seguros Privados, na medida em o Decreto-lei nº 73/66 ainda tem, em suas previsões, a determinação de que a contratação seja precedida por propostas assinadas, concebidas ali na forma convencional.
Evidente que todas as estas disposições legais devem ser interpretadas em compasso com os novos tempos e a era tecnológica. Naturalmente, que aquela proposta mencionada no art. 9º D.L. 73/66 seja admitida por assinaturas eletrônicas e outras formas de manifestação de vontade. Qualquer exegese sobre a exigência de uma proposta para contratação de seguros que não seja atrelada aos novos meios de revelação das vontades equivale a uma negativa da realidade social e de como tais feitios já se encontram presentes no dia-a-dia de todos.
O próprio Conselho Nacional de Seguros Privados já teve oportunidade de editar uma resolução nº 294/2013, em que se admite a utilização de meios remotos na contratação de seguros e planos de previdência aberta, trazendo, por outro lado, parâmetros para que emprego daquela utilização. E, no final do ano de 2017, amparado em pareceres jurídicos, novamente o CNSP reforçou tal posição, aprimorando tal regulamentação setorial para deixar clara não só a autorização a emissão de bilhetes, de apólices, de certificados individuais, de contratos coletivos e de endossos com a utilização de meios remotos, mas também que o aviso de sinistro, solicitação de resgate, concessão de benefício, portabilidade, alteração de beneficiário e demais solicitações que impliquem em alteração ou encerramento da relação contratual poderão ser efetivadas igualmente pelo uso de meios remotos.
Se é fato que diversas atividades do dia a dia já utilizam de tais meios, de outro ponto, deve ser compreendido o esforço hermenêutico para compatibilizar tais ações diante de uma legislação que demora a se atualizar com as novas ferramentas trazidas pela era digital.
O emprego destes instrumentos nos seguros traz também às seguradoras e profissionais ligados ao setor novas demandas, seja para reconhecer os direitos do consumidor, seja para equalizar tais ferramentas ao conteúdo normativo que rege tal relação. Basta imaginar que companhias deverão assegurar meios confiáveis para os protocolos que envolvam a utilização remota, inclusive quando se fizerem necessário para confirmação e comprovação em processos judiciais. Mais do que isto, sendo tal contratação caracterizada como uma pactuação à distância implicará no direito de arrependimento previsto no art. 49 do Código do Consumidor.
Por outro lado, é fácil reconhecer a possibilidade de que dados para a aceitação dos riscos, que antes eram obtidos fisicamente ou presencialmente, passam a ser também conduzidos por meios remotos. Em 2018 o Superior Tribunal de Justiça apreciou caso (RHC nº 98.920, j. em 28.6.2018) em que o recorrente, em tese, adulterou a data de validade de cópia de sua Carteira de Habilitação, e a utilizou para firmar contrato de seguro de automóvel, obtendo êxito em ludibriar a empresa, uma vez que a contratação foi realizada através de sistema eletrônico e a empresa não teve acesso presencial ao documento.
Sendo um contrato fundado na mais estrita boa fé e veracidade, a inexatidão ou inobservância poderá implicar na perda da garantia ou da indenização. Se tais conceitos e formas de aplicação já eram de complicada aplicação, esta dificuldade será potencializada com o emprego de meios remotos e o negócio eletrônico. Daí basta se imaginar a judicialização e a tormentosa exposição de todos aqueles aspectos para um processo judicial.
Mas as exigências do novo modelo não se limitam ao emprego dos meios remotos, seus riscos e a eventual judicialização. Considerando que o seguro pressupõe uma transferência de informações e dados que sirvam para o segurador dimensionar o risco, caberá a esse recepcionar e gerir tais dados. Deverão os agentes do mercado envidar todos os esforços para que não exista mau uso, mormente nos tempos da Lei de Proteção de Dados. Descuidos nos elementos protegidos pela privacidade das pessoas e das empresas poderá implicar em claros prejuízos e sérias responsabilizações.
A verdade é que a era digital é uma realidade nos negócios e contratos de seguro, e tende-se incrementar cada dia mais. Já a necessidade de adaptação dos agentes do setor e dos profissionais que lidam com as demandas dali decorrentes igualmente deve ser observada, sob risco de continuarmos utilizando velhas fórmulas para novas estruturas.
*Irapuã Beltrão
Graduado em Direito, passou no concurso de Procurador da SUSEP com 23 anos, exercendo a função até hoje como Subprocurador Chefe de Consultoria e Assuntos Societários. Atuou ainda como Gerente Geral de Normas e Análise de Mercados e Diretor Substituto na ANS de 2002 a 2006. Mestre em Insurance Law pela University of Connecticut e Doutor em Direito. Professor da Escola Nacional de Seguros – Funenseg no Rio de Janeiro e também da FGV, do Ibmec e da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro – Emerj. Acadêmico da ANSP desde 2018.
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