Desde os tempos em que era estagiário do saudoso mestre Rubens Walter Machado[1], tenho pela avaria grossa um especial apreço, enquanto tema de estudo, e um antagonismo não pequeno, enquanto realidade prática.
Entendia o mestre que em muitos casos se desnaturava e se abusava das declarações de avaria grossa. Profissionalmente, cresci com essa impressão e já pude verificar que ela não raro se confirma; com alguma frequência advogados de donos de cargas e/ou de seus seguradores enfrentam essa situação.
Como termômetro para essa febre da avaria grossa, é preciso analisar a conduta do capitão do navio, ou mais precisamente o que a causou. Comprovando-se fortuita, haverá avaria grossa e todos os seus efeitos jurídicos e econômicos; não se comprovando, a avaria será particular. Sobre isso não há tanta discussão. Independentemente do ordenamento jurídico a invocar, a avaria grossa depende do ato-fato gerador.
Neste modesto ensaio vou pouco além. Ouso sugerir que, no fundo, ela é anacrônica, não faz mais sentido no tempo atual. Abusiva ou não, a declaração de avaria grossa não deve ser mais considerada como antes.
Aqui, a defesa é pela ampla imputação de responsabilidade do transportador marítimo de cargas (seja o legal, seja o executor) e a adoção do princípio da reparação civil integral. Os argumentos, porém, não são novos. Em outras oportunidades, já os pude defender. Eles apenas ganharam mais corpo após os estudos de Doutoramento em Direito Civil pela Universidade de Coimbra.
Escrevi um artigo como parte do programa de avaliação do curso e nele tratei da responsabilidade civil do transportador marítimo de cargas (com especial destaque ao emissor do Bill of Lading), sobre o negócio que a informa e, em casos de faltas e/ou avarias, sobre as causas que excluem a presunção legal que corre contra o transportador.
Nesse tratamento, a avaria grossa foi tratada sob a perspectiva civilista do estado de necessidade. Nele se debateu a própria existência da avaria grossa, que parece incompatível com o estágio atual de desenvolvimento da responsabilidade civil.
Num momento em que a proteção da vítima de dano é o coração de tudo, e que o domínio do estado da técnica da navegação alcançou um antes inimaginável estágio de segurança, parece-me bem pouco defensável a repartição de prejuízos derivados da avaria grossa. Mais do que a investigação de seu cabimento ou não de sua declaração em sinistros marítimos, o que defendo é sua plena extinção. E o faço com amparo em implicações do estado de necessidade.
Num aparente paradoxo, uso uma ferramenta que desmonta o caráter ilícito de um dano para desfigurar a validade de uma conduta. O estado de necessidade que autoriza a ação típica de avaria grossa é, precisamente, o que pode justificar sua extinção.
Trabalharei em dois planos: o primeiro e principal é o de defender o fim da existência do conceito de avaria grossa, dado seu descompasso com o atual sistema de responsabilização de manejadores de fontes de riscos; o segundo é o de acusar os abusos de muitas declarações e o de sugerir enfrentamentos diretos, seja no calor dos acontecimentos, seja, depois, quando da análise cuidadosa dos fatos geradores.
Mal este ensaio iniciou e já antecipo sua conclusão. Convido o amigo leitor ao uso da engenharia reversa para entender minha posição e, quem sabe, dela compartilhar. Parto da conclusão para a melhor exposição de motivos e as misturo deliberadamente em inegável convicção: todo causador de dano tem de arcar com os prejuízos decorrentes da sua conduta. Não se lhe podem aproveitar válvulas de escape do dever de reparação civil integral, salvo as verdadeiramente justas.
Feito o convite, tomo pela mão aquele que generosamente me lê e começo essa breve viagem pela dialética e — por que não? — pela polêmica.
Vejamos:
Em Direito Marítimo, existem dois tipos básicos de avarias: avaria simples, conhecida ainda por particular, e avaria grossa, também denominada avaria comum.
Entenda-se por avaria a ofensa física à coisa transportada. Trata-se de espécie de dano e uma das formas de expor o descumprimento fiel do dever geral de cautela.
A avaria simples ou particular é a que recai sobre o bem transportado e tem como exclusivo responsável o transportador. Usaremos “coisa”, “bem”, “mercadoria”, “carga” como palavras afins. Embora dotadas de significações distintas, podemos usá-las aqui tranquilamente como quase sinônimas.
Não há muito que se falar sobre a avaria simples, já que, em Direito Marítimo, é o dano por excelência e o fenômeno mais comum nos litígios de reparação civil contra transportadores de cargas.
A avaria simples encontra-se inserida no contexto da própria responsabilidade civil do transportador marítimo. O dano no transporte marítimo de carga, causa-eficiente da responsabilidade civil, ou é decorrente de falta na descarga ou de avaria. Daí a “simplicidade” do trato da avaria simples, por assim dizer.
Dada essa simplicidade, e o pouco que há a se especificar (senão que a avaria simples é imbrincada da imputação de responsabilidade), concentramos estudos na avaria grossa, esta sim passível de grandes controvérsias nas lides espalhadas pelo país.
Entende-se por avaria grossa aquela voluntariamente causada pelo capitão do navio com o propósito de evitar o mal maior, desde que o perigo arrostado não tenha sido causado pelo próprio comandante, tripulação ou equiparados.
Em outras palavras, “avaria grossa é toda despesa extraordinária ou dano causado ao navio ou à carga, voluntariamente, em benefício comum de ambos”.[2]
Nelson Nery Junior, na sua mais recente obra, Comentários ao Código de Processo Civil:
Novo CPC – Lei 13.015/2015, diz:
A avaria comum ou grossa é suportada em comum pelo proprietário do navio e pelos proprietários das cargas, e representa toda despesa ou dano que procede da vontade do homem, e feitos extraordinariamente em benefício comum, para salvação do navio e de seu carregamento, com resultado útil (Hugo Simas, Comentários ao Código de Processo Civil – arts. 675 a 781, RJ: Forense, 1940, p. 433), enquanto a avaria simples é aquela que deve ser suportada apenas pelo navio ou proprietário da coisa que sofreu o dano ou deu causa à sua despesa. V. CCom 763.[3]
De âmbito internacional, trata-se de figura tradicional do Direito Marítimo. Confunde-se com a própria história da navegação comercial. Em boa parte do mundo, a avaria grossa é regulada pelos Convenções Internacionais de Direito Marítimo e, mesmo, pelos usos e costumes. Em Portugal, o Direito abraça as duas situações. No Brasil, ela é disciplinada pelo Código Comercial, na parte não revogada pelo Código Civil de 2002 e pelo Código de Processo Civil de 2015.
Instituto complexo e importante do Direito Marítimo, a avaria grossa reclama, qualquer que seja o ordenamento jurídicos, algumas condições particulares para configurar-se:
- a) Origem voluntária: ela é deliberadamente causada, diante do estado de necessidade, para evitar maiores males;
- b) Em benefício de todos os envolvidos e interessados na viagem marítima: o transportador de direito, o transportador de fato, o armador, o proprietário do navio, proprietários de cargas, e os seguradores deste e os de responsabilidade civil do transportador. O ato tem que visar à segurança comum e atender ao interesse geral. Não pode a avaria grossa ser dirigida apenas ao interesse do transportador marítimo (entenda-se, todos que se encaixam no conceito);
- c) Estrita necessidade de impedir mal maior: danifica-se uma carga para salvar vidas e o meio-ambiente, por exemplo. Todas as despesas e todos os sacrifícios são extraordinários e necessários para não agravar uma situação danosa;
- d) Efetividade: a avaria grossa tem que ser plena e efetiva. Significa dizer que o mal maior precisa ser, de fato, arrostado. Não se vislumbrando o sucesso da empreitada, a declaração não é válida, nem eficaz;
- e) Perigo real e iminente: o mero receio, ainda que justo, não induz avaria grossa. O estado de necessidade há de ser veraz e de modo algum causado pelo beneficiário maior da repartição de prejuízos, o transportador;
- f) Ausência de responsabilidade prévia do transportador: não se fala em avaria grossa se o mal maior a ser evitado foi culposamente causado pelo próprio transportador marítimo.
Todos os elementos caracterizadores da avaria grossa, diga-se, de sua justa declaração formal, devem estar presentes num determinado ato-fato jurídico, sob pena de não se caracterizar seu aperfeiçoamento. Demais, esses elementos seguem os ditames do princípio da proporcionalidade. Ora, se a proporcionalidade não estiver presente em cada um dos itens acima observados, impossível se falar em avaria grossa, pois não é razoável que despesas e sacrifícios enormes sejam empregados sem que o mal não seja, em essência, um mal maior.
Seguem ainda, o princípio da razoabilidade. O que não for razoável não é proporcional: para que um determinado ato-fato jurídico seja mesmo gerador de avaria grossa, fundamental a investigação da razoabilidade e da proporcionalidade na cadeia dos acontecimentos.
O efeito imediato da avaria grossa é a exoneração parcial de responsabilidade do transportador marítimo e a divisão dos prejuízos do dano voluntariamente causados e dos que se fizerem notar contextualmente.
Os prejuízos da viagem frustrada serão repartidos entre todos os participantes, proporcionalmente aos interesses econômico-financeiros. Quando se vale em todos os participantes, fala-se naquele rol taxativo de pessoas que estão inseridos binômio navio-carga, o que inclui os seguradores de todos.[4]
Segundo defensores da aplicação tradicional da figura da avaria grossa, trata-se da aplicação do princípio da equidade, pelo qual os que se sacrificam pelo benefício geral devem ser por todos beneficiados. Da mesma forma, os que efetuam despesas para o bem comum, são proporcionalmente atingidos e o transportador imediatamente beneficiado, com a sensível mitigação de sua responsabilidade.
Sendo particular a avaria, de outra banda, o transportador responderá integralmente pelos danos e prejuízos, salvo se amparado por prova de ocorrência de causa legal de exclusão de responsabilidade. Se grossa for a avaria, o transportador arcará com pequena parte dos prejuízos e o todo será repartido entre as vítimas, ou seja, os donos de cargas e seus seguradores.
Daí a importância da perfeita apuração dos fatos, porque é por meio dela que se saberá se um caso se alinha a um ou a outro conceito; as consequências do alinhamento a tal ou qual são distintas e, ao mesmo tempo, importantíssimas.
Embora não possamos falar em ilicitude da conduta danosa do comandante do navio, a despeito de sua voluntariedade, podemos questionar o enquadramento que lhe dão, e se essa conduta se ajusta ao conceito de necessidade e à conveniência-oportunidade do dano causado deliberadamente pela suposta salvaguarda de bens maiores.
No instituto da avaria grossa se vê estampado o que o senso comum do Direito Civil dispõe sobre o estado de necessidade. Sobre essa causa importante de exclusão de imputação de responsabilidade, novamente nos socorremos da abalizada doutrina de Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa[5], que diz:
Apesar de o ato ser lícito, poderá impor-se a obrigação de indemnizar o lesado pelo prejuízo sofrido. Trata-se de hipótese de responsabilidade por atos lícitos ou pelo sacrifício, que justifica em nome da justiça comutativa. Haverá, contudo, ilicitude se o perigo que o autor da lesão pretende evitar tiver causado por sua culpa exclusiva, nos termos do artigo 339º/2 CC.
E a respeitada doutrinadora, reportando-se ao sistema legal e a doutrina portugueses, diz um pouco antes da citação por nós selecionada que:
- c) Estado de necessidade
Nos termos do artigo 339º. CC, “é lícita a ação daquele que destruir ou danificar coisa alheia com o fim de remover o perigo atual de um dano manifestamente superior, quer do agente, quer de terceiro”. De acordo com a lição de Antunes Varela, “o estado de necessidade consiste na situação de constrangimento em que age quem sacrifica coisa alheia, com o fim de afastar o perigo atual de um prejuízo manifestamente superior. Inclui-se, aqui, a destruição, a danificação, a utilização, a apropriação de coisa alheia”[6]
Podemos dizer que o estado de necessidade e a avaria grossa são praticamente irmãos de sangue? A resposta, como a quase tudo no Direito, é: depende.
Em princípio, sim. O comandante causa danos deliberados movido pela mesma razão pela que se movem os que agem em estado de necessidade. A diferença é que, por meio de tal declaração, o transportador fica isento de ônus econômico-financeiro que são impostos aos premidos pelo perigo atual.
De se notar que a jurista Miranda Barbosa destaca a possibilidade de responsabilização civil do autor do dano, o que não ocorre com o transportador marítimo, dadas as normas das Convenções Internacionais de Direito Marítimo e dos usos e costumes do setor.
Compete-nos ainda sublinhar a afirmação de que “Haverá, contudo, ilicitude se o perigo que o autor da lesão pretende evitar tiver causado por sua culpa exclusiva, nos termos do artigo 339º/2 CC.” como espécie de antecipação de nossa proposta neste estudo. Ora, quando a declaração for abusiva e não se sustentar por seus próprios fundamentos, a descaracterização é a medida de rigor.
Então, essa descaracterização estará para o transportador, para sua declaração unilateral de avaria grossa, como a culpa exclusiva está para o autor de perigo atual, e consequentemente dano, gerados por sua própria culpa. Assim como a culpa exclusiva impõe ilicitude ao que age movido por estado de necessidade, ela descaracteriza a avaria grossa sempre que se fizer presente num dado sinistro marítimo. A causa-raiz do ato motivador de avaria grossa não pode ser de modo algum oponível ao transportador.
Lembramos ainda de outra significativa diferença: na avaria grossa, ao contrário do que ocorre na maior parte dos casos de estado de necessidade, o autor do dano, o transportador, recebeu em confiança os bens danificados, por meio de contrato marcado pelo signo da obrigação de resultado. Isso exige maior cuidado na invocação de qualquer benefício legal.
Pois bem, a despeito do ordenamento jurídico em foco num dado caso concreto, a avaria grossa, quando declarada e veraz, implicará obrigação de fiança idônea por parte dos donos das mercadorias transportadas, a fim de fazer frente ao pagamento da contribuição da avaria grossa a que seus bens forem obrigados no rateio final. Não sendo operada esta garantia, o transportador marítimo poderá, inclusive, requerer o depósito judicial das mercadorias e sua venda posterior.
Em que pesem a tradição do Direito Marítimo e, em princípio, a alegada razoabilidade do conceito da avaria grossa, bem como a equidade que se observa na ideia de rateio comum, posicionamo-nos contrários à manutenção da avaria grossa.
O empenho, aqui, é o de, pela lógica do estado de necessidade, não se emprestar mais validade e eficácia ao conceito de avaria grossa. E esse empenho é em muito facilitado quando comparamos os dois conceitos assim os considerando: embora estabelecida normativamente antes mesmo do estado de necessidade, a avaria grossa é espécie, ao passo que o estado de necessidade, gênero. Este cabe ao Direito Civil como um todo e aquele ao Direito Marítimo. Ocorre que o primeiro não pode de modo algum desprezar os arquétipos que o segundo impõe.
Veja-se que nem se cogita do abuso na sua declaração, algo que, aliás, ocorre com desoladora frequência. Quando indevida a declaração de avaria grossa, haverá sua desconstituição e a conversão imediata ao estado de avaria comum.
Nisso, aliás, bem interessante o que escreveu o ilustre Professor de Direito Marítimo brasileiro, Osvaldo Agripino de Castro Junior, e que pode ser aplicado ao mundo todo.
Realmente, em artigo intitulado “Breves reflexões sobre Avaria Grossa: como evitar o abuso?”[7], o autor considera de antemão que existem abusos nas declarações pelos transportadores e que, em não poucos casos, em vez de se falar em avaria grossa, há de se falar, em verdade, de avaria simples.
Além de destacar o abuso das declarações, justamente por força da culpa antecedente do próprio transportador, Agripino de Castro Junior entende, como nós, que a avaria grossa é figura anacrônica, injustificável nos dias correntes e que, talvez, tenha seus dias contados: “Tenho dito que, como 95% do nosso comércio exterior é feito por navio, assim como a morte física é inexorável para quem vive, o pagamento de demurrage e de AG para quem usa o transporte marítimo”[8].
O professor ainda faz comentários que aqui reproduzimos e tomamos como nossos[9]:
O que vemos, em alguns casos, é uma negligência do transportador em relação ao zelo na operação do navio, especialmente quando é substandard, com manutenção precária decorrente de cuidado não adequado (suboptimal care), antes dessa despesa geradora da AG, e um excessivo zelo com o pagamento do reparo e das despesas após o pagamento da AG, com os recursos da carga.
Na verdade, há uma distorção/redução da responsabilidade civil do transportador negligente, cujas despesas feitas intencionalmente para a salvaguardar a carga e o navio, são pagas pela carga, que não tem qualquer poder na decisão do zelo adequado na manutenção e operação do navio.
Nosso entusiasmo com essas afirmações não poderia ser maior porque sabemos que muitas declarações são fundamentalmente desnaturadas, que a avaria grossa é empregada onde não se deve e, mais, que ela não se ajusta mais ao que o Direito atual pugna sobre riscos, responsabilidades, direitos e obrigações, seja à luz do conceito civil de estado de necessidade, seja em relação à proteção dos legítimos interesses da vítima.
Neste trabalho, o que se defende é o anacronismo da avaria grossa, mesmo em se reconhecendo o estado de necessidade, e, consequentemente, seu descabimento. Ou o caso é de imputação plena de responsabilidade, ou a ser guiado por causa de exclusão (com as devidas restrições e a observação fiel dos novos paradigmas), mas não de divisão de ônus, de impertinente mutualismo.
Hoje, o transporte marítimo não é mais uma aventura como no passado. Muito pelo contrário. É atividade bastante segura e, mais do que nunca, precisa. É, ainda, vital para a economia global, atrelada ao próprio conceito de comércio exterior, que gera riquezas e é tida como estratégica para a economia saudável de um país. Por isso mesmo, exige-se elevado grau de profissionalismo.
O transportador é o beneficiário imediato da operação de transporte, aquele que mais lucra com o transporte de cargas e que dele vive. Logo, é razoável que venha a suportar, sozinho, os prejuízos decorrentes de um dado sinistro, não se falando em avaria grossa, mesmo que, a fim de evitar mal maior, tenha dependido muito dela.
Afinal, tratando-se de uma obrigação contratual de resultado, aquele que tem o benefício maior também tem que arcar com eventuais ônus. Se, no passado, era justa a repartição de prejuízos em casos configuradores de avaria grossa, hoje decerto não o é mais, devendo, portanto, o transportador arcar sozinho com todos os prejuízos disso decorrentes.
Por isso, combatemos os efeitos jurídicos da avaria grossa, não concordando de forma alguma com o rateio de despesas e prejuízos, os quais se revelam extremamente onerosos para os proprietários das cargas.
De qualquer modo, mesmo em se mantendo a avaria grossa como tradicionalmente se encontra, observamos que sua declaração depende, além dos itens já mencionados, de prova técnica em tal sentido, já que não basta a simples declaração.
Em muitos casos, a própria natureza dos fatos tem desqualificado as declarações de avarias grossas, forçando os transportadores (armadores), que as declararam, a ressarcir todos os prejuízos que suas falhas operacionais causaram.
Conceder a uma avaria particular o status de avaria grossa é algo temerário e que não pode ser abraçado de forma alguma, sob pena de injustiça flagrante aos donos de cargas e seus seguradores. Com base na legislação brasileira vigente, é até possível afirmar que o conceito de avaria grossa só tem guarida e aceitação quando a causa antecedente ao dano voluntariamente causado pelo transportador para salvaguarda de bens maiores não tiver sido, de algum modo, por conduta culposa (ou dolosa), do próprio transportador. Há inegáveis razões ontológicas e de boa lógica jurídica para tanto, na medida em que não pode um dado benefício legal prejudicar o causador do dano.
Nesse mesmo sentido, muito aproveita lembrar que no sistema legal brasileiro opera a ideia de reparação civil ampla e integral, disposta como garantia fundamental constitucional, de tal modo que o benefício da avaria grossa e da repartição de prejuízos e ônus se revela injusto quando a causa antecedente for provocada pelo próprio beneficiário.
Vale lembrar, por fim, que esse mesmo entendimento foi rigorosamente mantido nos artigos do Código de Processo Civil de 2015, que passou a dispor sobre os procedimentos e a natureza jurídica da avaria grossa.
Não é ocioso, por fim, afirmar que esse entendimento se encontra praticamente pacificado no acervo jurisprudencial brasileiro, tornando quase letra morta as discussões a respeito.
No mundo ideal, tudo isso bastaria para colocar pá de cal no assunto e fazer imperar a absoluta tranquilidade. Mas, por natureza e excelência, o Direito é dialético.
Não raro, ocorrem em águas internacionais os sinistros marítimos com interesses de embarcadores, consignatários e seguradores de cargas brasileiros, sob o manto, portanto, de legislações estrangeiras, sistemas jurídicos diversos, sendo regulados fora do país.
Assim, os interessados brasileiros, ao menos num primeiro momento, numa fase inicial de tratamento de um determinado sinistro, são obrigados, não raro com alguma truculência comercial, a aceitar imposições tidas como absurdas aos olhos do sistema legal do Brasil.
Com base em disposições contratuais adesivas dispostas nos anversos dos conhecimentos marítimos, os armadores e/ou transportadores declaram avarias grossas mesmo nos sinistros que, na cadeia de eventos, eles mesmos provocaram em alguma medida. E o fazem porque essas cláusulas contratuais (adesivas) remetem ao uso das Regras de York/Antuérpia, convenção internacional da qual o Brasil não foi signatário e que não é válida no sistema legal do país.
Aliás, muito importante lembrar que o Brasil, reconhecendo sua condição de país cargo, não assinou qualquer convenção internacional maritimista, preservando sua soberania e defendendo corretamente seus interesses. A única convenção que o Brasil assinou, a de Hamburgo, em 1974, não foi ratificada pelo Poder Legislativo, de tal forma que não integra seu acervo legal.
Assim, as regras de York/Antuérpia são ilustres desconhecidas do ordenamento jurídico nacional, felizmente. Nossa saudação pela não incorporação dessas regras e de outras de Convenções Internacionais de Direito Marítimo não nos impede de dizer que elas próprias também exigem da conduta não culposa do transportador na causa antecedente ao ato-fato gerador da avaria grossa, o que causa ainda mais estranheza o frequente abuso e nos motiva ainda mais a defender-lhe a extinção.
Mas, de todo o modo, se tratando de uma questão apurada no exterior, impossível ao interessado brasileiro não se deixar submeter, mesmo que a contragosto, às avessas, ao sabor das referidas regras, e aceitar a imposição do transportador.
Aceitar é o único meio de resolver eventuais pendências, obter a liberação da carga (quando for o caso) e não sofrer sanções de qualquer ordem e natureza.
Isso não quer dizer que, depois, sendo possível a invocação da jurisdição nacional (tudo depende das particularidades do caso), a declaração de avaria grossa não possa ser questionada. Não só poderá, como deverá ser questionada, se a causa antecedente tiver sido efetivamente provocada pelo transportador.
Ora, além de tudo o que já exposto sobre a verdadeira natureza jurídica da avaria grossa, ao menos segundo a legislação brasileira, tem-se que uma cláusula abusiva, presente num contrato de adesão, é tradicionalmente rotulada como nula de pleno direito pelo sistema legal brasileiro.
As leis e os órgãos monocráticos e colegiados do Estado-juiz não aceitam as cláusulas abusivas, sejam elas delimitadores de foros, limitativas de responsabilidade ou ensejadoras de benefícios legais-econômicos incompatíveis com a legislação brasileira, exatamente como as que tratam nos conhecimentos marítimos, de forma unilateral, adesiva, da avaria grossa.
E essa forma de encarar e aplicar o Direito ganha ainda mais força e sentido quando a cláusula abusiva faz remissão aos termos de convenção internacional da qual o Brasil não foi signatário, como as tais regras de York/Antuérpia, absolutamente descompassadas com a ordem jurídica do Brasil e, até mesmo, com a realidade fática.
Com efeito, as referidas regras foram elaboradas para a manifesta proteção dos armadores e transportadores marítimo. Há nelas elementos verdadeiramente draconianos, os quais permitem o desequilíbrio de forças entre os transportadores de cargas e os proprietários dessas mesmas cargas, fazendo destes reféns daqueles. Além disso, o cenário da navegação naquele tempo era completamente diferente dos dias atuais. Os riscos eram maiores do que os de hoje, haja vista o desenvolvimento vertiginoso da engenharia, da indústria naval e dos sistemas de informação e de navegação.
Ora, até mesmo com base na jusfilosofia e na teoria tridimensional do Direito do Professor Miguel Reale (Direito é norma, fato e valor), qual o sentido de se aplicar à norma de ontem o mesmo valor diante do fato de hoje? A navegação contemporânea não é isenta de riscos e de perigos, de atos-fatos fortuitos, mas também não é mais uma aventura como no passado.
Aliás, aproveitando a ambiguidade, o poeta já havia dito: “navegar é preciso, viver não é preciso”.
Sendo assim, o interessado brasileiro, dono de carga ou seu segurador, que num primeiro momento foi premido a aceitar os efeitos jurídicos de uma avaria grossa, poderá questionar, com ótima chance de êxito, esses mesmos efeitos no plano judicial brasileiro, afinal, o que vale extrajudicialmente e à luz de um sistema jurídico estrangeiro certamente não vale para o âmbito judicial, segundo o sistema jurídico brasileiro.
Não é exagero algum alegar que a declaração de avaria grossa – fundada no conhecimento marítimo e das regras de York/Antuérpia –, quando a causa antecedente ao dano voluntário não for efetivamente fortuita é ineficaz sob as lentes do Direito brasileiro, além de tudo já exposto, por agredir frontalmente o princípio-regra da boa-fé objetiva, prevista no art. 422 do Código Civil.
Também não é exagero afirmar que, de algum modo, a declaração de avaria grossa se enquadra nos vícios do consentimento, na medida em que os aceitantes não são de fato e de direito aceitantes, mas vítimas de uma imposição fática, não raro arbitrária, com uma roupagem jurídica sem moldes no Brasil.
Daí a convicção que, em muitos casos, bem dimensionadas as particularidades, a busca da ineficácia e invalidade da declaração de avaria grossa é perfeitamente possível, ensejando a luta pelo melhor Direito e a busca de simetria das relações jurídicas e negociais dos transportes internacionais de cargas.
Sendo declarada a avaria grossa, os desdobramentos serão automáticos e impactantes nos cenários empresarial e maritimista, sendo o principal deles a mitigação da responsabilidade civil de um transportador marítimo de cargas.
Com efeito, como inicialmente mencionado, a declaração da avaria grossa implica a repartição dos prejuízos entre todos os interessados na viagem marítima, donos de cargas, seus seguradores, armador, proprietário do navio, clube de proteção e indenização e, eventualmente, outros, tendo-se por certo que a quota-parte de cada interessado será conforme o montante de interesses econômicos em pauta.
Quando concreta, declarada à luz do procedimento processual, reconhecida como tal, a avaria grossa põe pá de cal em qualquer discussão acerca da responsabilidade civil do transportador marítimo por eventuais danos às cargas estivadas a bordo do navio, bem como aos terceiros prejudicados. Não se falará, pois, em inadimplemento contratual, em ofensa à “cláusula de incolumidade”, em desrespeito aos deveres objetivos de guarda, conservação e entrega dos bens confiados para transporte, em presunção legal de responsabilidade ou, em alguns casos especiais, em culpa aquiliana. Nada disso terá interesse.
Todavia, por razões também inicialmente expostas, após o procedimento processual e outros extrajudiciais, poder-se-á constatar que um caso concreto inicialmente tido como de avaria grossa foi, é e será própria de avaria simples.
E ao se constatar a avaria simples em vez da avaria grossa, os desdobramentos serão completamente distintos, especialmente no que diz respeito aos Direitos Civil, Empresarial e Marítimo, sobretudo no campo da responsabilidade civil do transportador marítimo de cargas. Portanto, o caso passará a ser disciplinado como um caso comum na literatura do Direito do Transporte, relativo ao descumprimento de obrigação de resultado e todo o acervo jurídico que o informa.
Determinar ou não a avaria grossa num caso concreto, resumindo, é muito importante para a avaliação da possível responsabilidade civil do transportador marítimo por danos e prejuízos, sobretudo em relação a cargas confiadas para transporte.
A responsabilidade civil do transportador de cargas é disciplinada pela teoria objetiva imprópria, de tal sorte que o transportador é presumidamente responsável pelos danos e prejuízos decorrentes da inexecução da obrigação de transporte, típica de resultado.
A rigor, quaisquer faltas ou avarias apuradas nos desembarques implicam em responsabilidade do transportador, tenha ele agido ou não com culpa. Somente as causas legais excludentes de responsabilidade o poderão exonerar tal presunção de responsabilidade, sendo certo que ao transportador competirá exclusivamente com o ônus da prova em seu benefício.
Mesmo provando a ocorrência de alguma causa legal excludente de responsabilidade, especialmente as ligadas ao conceito amplo de fortuidade, é imprescindível o caráter absoluto, pois havendo qualquer sequela de relatividade, o transportador ainda responderá, pois a cada dia — revela-o bem a prática — torna-se mais difícil a caracterização de um dado fenômeno como efetivamente fortuito. O que antes era fortuito hoje já não mais o é, tendo-se em conta as mudanças do mundo. Mais do que em outros temas, reside aqui, insistimos, a beleza da teoria tridimensional do Direito.
Diante disso, a não observação rigorosa das regras processuais civis no trato de um procedimento de avaria grossa poderá reduzi-la ao plano da avaria simples, com consequente imputação de responsabilidade do mesmo transportador marítimo.
Em conclusão, defendemos duas coisas: 1) análise rigorosa dos fatos de cada caso concreto em que a avaria grossa é declarada, para saber se há ou não abuso por parte do transportador e se ela é mesmo cabível; e, ainda mais importante, 2) que não é mais próprio falar em avaria grossa no tempo atual, considerando o elevado estágio da navegação. Já não há mais espaço para casuísmos e oportunismos, e o que antes se mostrava justo, certamente não se dota mais dessa qualidade. A comparação imediata com o estado de necessidade é importante para melhor compreender o desenho da responsabilidade civil do transportador relativamente aos danos nas cargas confiadas para transporte.
E na esteira do que concluímos, sugerimos, aos interessados (donos de cargas e seus seguradores) que, diante da declaração de avaria grossa em dado caso concreto, não se deixem de modo algum intimidar.
Sendo possível, contestem-na imediatamente, combatendo seus efeitos no calor dos acontecimentos. Essa contestação pode ser exercida diretamente ou pela via judicial.
Exemplos de combates judiciais: ação de produção de provas, depósito do valor das garantias, insurgência contra a imposição dos termos e condições impostos pelo armador, notadamente em relação à eleição de foro estrangeiro e/ou compromisso arbitral.
Se, contudo, não for possível o enfrentamento imediato e/ou diante do justo receio de não liberação de cargas e outros ônus ou encargos excessivos, que se aceite inicialmente a declaração, mas se externe de algum modo, formalmente, o inconformismo, evidenciando-se a dúvida quanto ao cabimento.
Esse registro de inconformismo será importante para ajudar na luta futura de conversão ao estado de avaria particular e o pleno exercício da reparação civil ou do ressarcimento em regresso, sem se falar de modo algum em repartição proporcional dos prejuízos, mas em imputação integral de responsabilidade.
Mostrar-se-á, com o registro formal de inconformismo, que os donos de cargas e/ou seus seguradores somente aceitaram a declaração e os instrumentos que a informam porque obrigados pelas circunstâncias, guiados pelo abusivo arbítrio alheio, transformados involuntariamente em navegantes da rota reversa do conceito original de avaria grossa, ou seja, aceitantes da imposição para o evitamento de males maiores.
A meta é o perecimento do conceito de avaria grossa. Até atingi-la, se é que um dia será, que ao menos haja o contingenciamento de seus danos e a razoabilidade de seu uso.
Que imensa estupidez não ter pensado nisso antes!
T.H. Huxley
[1] Este ensaio é o primeiro de uma série dedicada ao Direito Marítimo e ao Direito dos Seguros que intitulo “Estudos em homenagem à vida e obra profissional de Rubens Walter Machado.
[2] Escola de Negócios de Seguros (antiga FUNENSEG). Glossário de terminologia técnica comercial marítima. 2. ed. Rio de Janeiro, 2002, p. 7.
[3] NERY Jr., Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil: Novo CPC – Lei 13.015/2015. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1535.
[4] Nota: por seguradores há de se entender não apenas os das cargas, mas os de responsabilidade civil dos transportadores, os P&I Clubs [clubes de proteção e indenização de armadores, pessoas jurídicas de direito privado que exercem funções típicas de seguradores e se organizam na forma de mútuos].
[5] Op. Cit., p. 212
[6] Op. Cit., p. 211-212
[7] DE CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino. “Breves reflexões sobre Avaria Grossa: Como evitar o abuso?”. Agripino e Ferreira Advogados, 2022. Disponível em: https://agripinoeferreira.com.br/breves-reflexoes-sobre-avaria-grossa-como-evitar-o-abuso. Acesso em jan. 2024.
[8] Nota do autor: AG é a abreviatura de Avaria Grossa
[9] Idem ibidem.
*Paulo Henrique Cremoneze
É advogado com atuação em Direito do Seguro, sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, parceiro de SMERA-BSI, mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro pela Universidade de Salamanca (Espanha), membro da Academia Nacional de Seguros e Previdência, diretor jurídico do CIST, membro da AIDA e do IASP, presidente do IDT, colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna de Santos, autor de livros jurídicos de Direito do Seguro e de Direito dos Transportes. Coordenador da Cátedra de Transportes da ANSP.
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