Há nítida distinção entre serviços médicos prestados aos pacientes enquanto segurados de operadoras de seguro saúde e as indenizações que são prestadas por estas aos seus segurados enquanto pacientes de serviços médicos. Daí a não obrigação das seguradoras de pagarem a contribuição previdenciária que incide sobre os honorários médicos.

Discute-se judicialmente a incidência da contribuição previdenciária sobre pagamentos feitos pelas seguradoras especializadas em saúde aos médicos de sua rede meramente referenciada. O fato gerador dessa contribuição, conforme previsão legal, é restrito aos pagamentos realizados por pessoa jurídica a título de prestação de serviços, desde que tais serviços lhe sejam efetiva e realmente prestados, descabendo a incidência, até em face do princípio da legalidade, sobre os repasses feitos pelo agente pagador, por ordem e conta de outrem, no caso os segurados, estes sim, tomadores dos serviços médicos, jamais prestáveis a pessoas jurídicas, posto que insuscetíveis, por óbvio, a enfermidades físicas.

O intróito já seria suficiente para perceber a não incidência da contribuição em causa. Nada obstante serem irrespondíveis os argumentos. Para tanto, verificam-se algumas poucas decisões favoráveis à incidência e muitas outras contrárias. As primeiras, permitam-me vênia, com premissa falsa qual a de que as seguradoras remuneram os médicos no atendimento prestado aos seus segurados e que, só por isso, se apresentam como tomadoras desses serviços, pelo simples fato de existir coligação do contrato de prestação de serviço médico com o paciente e o contrato de seguro entre o paciente (segurado) e a seguradora.

A premissa não é verdadeira na medida em que, embora estejam esses contratos ambientados em um determinado contexto, são contratos legal e juridicamente distintos, com objetos diferenciados, pois enquanto no primeiro o serviço prestado se confina entre médico e paciente, objetivando o tratamento da saúde física ou mental do doente, absolutamente insuscetível de ser prestado a uma pessoa jurídica. No segundo, é dizer, no contrato de seguro, o que se presta é a garantia dos riscos financeiros para o tratamento da saúde do segurado, tanto que, sem esquivanças, a lei determina que o pagamento ao médico se dê por ordem e conta do segurado (Lei 9.656/98, art. 1º, inciso I), até para evitar o desembolso do pagamento direto que deveria efetuar ao seu médico e que só não o fez porque houve uma garantia dada pela seguradora ao médico escolhido, de que o valor lhe seria entregue por ordem e conta do paciente, em face do contrato de seguro. Trata-se, portanto, de contratos com tomadores distintos: no de prestação médica, unicamente o segurado enquanto paciente, por óbvio; no de seguro, unicamente o paciente enquanto segurado, o que basta para verificar, com extrema facilidade, que os tomadores e os objetos não se misturam, tampouco se confundem no caso.

Tanto isso é verdade que, sendo o contrato de seguro-saúde de livre escolha pelo paciente segurado do médico que irá lhe assistir, o segurado pode optar por efetuar o pagamento diretamente ao seu médico e requerer junto à seguradora o reembolso nos limites do contrato. Tudo, portanto, uma questão de oportunidade e forma, que se resume na certeza inexorável de que em qualquer circunstância o tomador do serviço médico, seja ele segurado ou não, é o paciente, e jamais o segurador, que é prestador tão somente do “serviço” da garantia dos riscos financeiros incorridos pelo segurado para o procedimento médico de que necessitar. Aqui, o segurador não pode, a um só tempo, ser prestador e tomador.

Segundo entendeu o próprio STJ (dentre outros no REsp Nº 668.216-SP, em que foi relator o ministro Carlos Alberto Menezes Direito), ao segurador, conquanto possa estabelecer quais doenças estão sendo cobertas, não cabe interferir no contrato entre o médico e o paciente, pois só ao médico compete proceder no seu mister, não cabendo ao segurador dizer sobre tal ou qual tratamento ou procedimento médico a ser adotado para a doença coberta, razão também bastante para se inferir pela absoluta impossibilidade de ser o segurador considerado tomador de tais serviços. A independência do médico frente à operadora de plano de saúde (aqui incluídas as seguradoras de saúde) é inconteste e, inclusive, vem reafirmada no recente Código de Ética Médica.

Afinal, o contrato é de seguro, pelo qual, mediante recebimento do prêmio o segurador, garante os riscos financeiros dos procedimentos médicos, hospitalares, ambulatoriais, predeterminados no contrato, este que se enquadra nas definições do art. 757 do Código Civil de 2002 e da Lei 9.656/98. Os pagamentos realizados pela seguradora, quer diretamente aos médicos que prestaram os seus serviços aos segurados, quer por via de reembolso, ambas as situações se caracterizam como indenização decorrente de uma operação de seguro. Na primeira hipótese em nome, ordem e conta do segurado; na segunda, diretamente a ele.

Juristas de renome, do estofo de CÉLIO BORJA, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, LÚCIA VALLE FIGUEIREDO (saudosa), LUÍS ROBERTO BARROSO, dentre outros, se pronunciaram no sentido de que os pagamentos efetuados por força do contrato de seguro celebrado entre a seguradora e seus segurados, não estão sujeitos à tributação por meio da contribuição previdenciária em causa, justo porque não caracterizam o fato imponível – ou gerador – da respectiva obrigação tributária.

Não se trata, pois, de pagamento de honorários médicos que as seguradoras efetuam a profissionais autônomos da saúde, que tenham sido por elas com esse objetivo contratados. Mas sim, ao fim e ao cabo, de pagamento de indenização aos segurados, diretamente a eles ou por conta deles, como cumprimento de prestação decorrente do contrato de seguro.

O seguro-saúde, excluído da seção dos seguros de pessoa conforme art. 802 do Código Civil se caracteriza, não só por isso, como seguro de dano regido pelo princípio indenitário, daí porque seguro de reposição por natureza, razão suficiente para se entender que, seja na hipótese de reembolso direto ao segurado, seja na de pagamento direto aos médicos, por ordem e conta daquele, ambas as hipóteses decorrem da obrigação oriunda de uma operação de seguro, da prestação de uma obrigação indenizatória, decorrente de um sinistro como fato aleatório. Jamais da prestação de um serviço médico do qual tenha sido a seguradora tomadora, até porque, como pessoa jurídica que é, diga-se uma vez mais, nunca seria paciente por enfermidade física, por isso jamais demandante de serviço médico que lhe seja a esse título prestado. Os seus segurados sim, vale também aqui repisar, são os efetivos tomadores desses serviços, pelo regime de livre escolha que preside o seguro-saúde, seja escolhendo o médico constante de lista referenciada ou não.

A relação jurídica aqui cuidada se realiza entre segurado e segurador por força do contrato de seguro que firmaram, cujo regime jurídico é, desassombradamente, de Direito Civil, sob os auspícios da lei que rege o contrato de seguro e de legislação própria recepcionada (art. 777 do CC), não sem lembrar de que o contrato de seguro é oneroso, bilateral, formal, por vezes consensual, aleatório, por vezes comutativo.

O direito tributário, não seria demasiado frisar, é de sobreposição, por isso se vale das figuras emanadas de cada uma de suas searas jurídicas competentes, razão porque o contrato de seguro terá a conotação que se lhe dá o Direito Civil.

Como bem acentuou o acatado Jurista e Professor CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, em respeitado Parecer não publicado e datado de 19/03/09, mas versando o tema ora cuidado, a específica modalidade do seguro-saúde, hoje e sempre, “pode ocorrer (1) por reembolso (hipótese em que o segurado escolhe um médico qualquer e, após, é reembolsado nos limites do contrato) ou (2) por acesso à rede referenciada (o segurado tem, para sua conveniência, a possibilidade de ir a um médico referenciado pela seguradora, sendo que o pagamento pelo evento médico, posteriormente, é acobertado pela seguradora ao profissional, pagamento esse sempre por conta e ordem do segurado – art. 1º da Lei 9.656/98)”.

E sempre assim se deu mesmo antes da Lei 9.656/98. No regime do DL 73/66, quando já se vedava, como hoje ainda se veda, às seguradoras a prestação direta dos serviços de assistência médica e ou hospitalar através de profissionais médicos ou estabelecimentos hospitalares contratados, como também já vigorava o critério da livre escolha, pelo segurado, do médico que lhe aprouvesse, permitindo apenas lista de médicos referenciados, para facilitar a prestação da assistência ao segurado, assim como a certeza de que a garantia objeto do contrato de seguro saúde sempre foi a de suporte financeiro aos segurados, para custearem as despesas incorridas com a assistência médica, dando cobertura aos riscos decorrentes de danos involuntários à saúde.

A Resolução CNSP nº 31/94, por exemplo, que consolidava as normas que antes regulavam o seguro-saúde, também foi categórica ao determinar, sem margem a dúvidas, de que os serviços médicos não são prestados à seguradora, mas aos pacientes segurados, e a autorização para as sociedades seguradoras estabelecerem lista de médicos referenciados possibilitando, para facilitar a vida do segurado, pagamento direto das despesas médicas ao prestante dos serviços médicos, caso em que “os pagamentos aos prestadores de serviço serão feitos pelas sociedades seguradoras em nome e por conta do segurado.

No antes citado Parecer, o Professor BANDEIRA DE MELLO, qualificando a questão como de extrema simplicidade, aduz que “foi a própria Constituição quem definiu a responsabilidade de definir quem seriam os contribuintes da seguridade social. E esta, no seu art. 195, I, ao tratar da contribuição previdenciária do empregador ou equiparado é perfeitamente explícita em indicar que ela apenas incide sobre: (a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados à qualquer título, à pessoa física que lhe preste o serviço, mesmo sem vínculo empregatícios; (b) a receita ou faturamento e (c) o lucro”.

E conclui, sem rebuços de dúvida, que, à toda evidência, não estando em pauta as hipóteses “b” e “c“, evidentemente tudo se resume em verificar se, in casu, houve pagamentos a pessoa física que haja prestado serviço à seguradora nos pagamentos feitos em função do seguro- saúde, mesmo sem vínculo empregatício, respondendo que não. E fundamenta sua resposta no fato de que “estando em causa serviços médicos prestados a pacientes, é óbvio que ditos serviços fisicamente foram dispensados a outro sujeito que não a seguradora, pessoa jurídica, a qual, bem por isto, não é sujeita a desconcertos biológicos. Outrossim, juridicamente, como é claro a todas as luzes, também não foram e não podiam ser prestados a ela, pois “não foram prestados em nome dela ou por conta dela“, mas “por conta e ordem do consumidor“, nos exatos termos do art. 1º, I da Lei 9.656/98, regra que já vem de longe, desde o DL 73/66 e as competentes Resoluções, alhures citadas, do Conselho Nacional de Seguros Privados. É que os serviços em questão foram, isto sim, prestados a terceiros, pessoas seguradas por sociedades seguradoras especializadas em saúde.

Arremata o Professor CELSO ANTÔNIO, que “jamais poder-se-ia, então, em face da ordem jurídica, alimentar a suposição de que foram indiretamente prestados a ela, seguradora, pois, como dito a própria lei nº 9.656” (e atos normativos de então) “expressamente, são absolutamente claros e explícitos ao dispor que o pagamento, sobre o qual se discute eventual incidência de contribuição previdenciária, é feito “por conta e ordem do consumidor“.

Tudo isso conduz a dizer que o tomador do serviço médico é o segurado, pois a ele é de direito prestado, e que o rendimento do trabalho pago ou creditado se faz “por conta e ordem dele”, não, pois, por conta e ordem da seguradora. Quer dizer, o título jurídico que sustenta o pagamento é induvidosamente uma indenização de sinistro, cujo credor é o sinistrado, no caso, o segurado que gerou a despesa.

Em suma, a obrigação jurídica da seguradora para com seus segurados é diversa da referente à relação de serviço médico, justo porque sua função é a de indenizar, total ou parcialmente, o segurado do custo financeiro gerado pelo sinistro. A prestação indenizatória da seguradora, pois, é aos segurados e não aos prestadores de serviços de saúde. É dizer, de direito ou de fato, os clientes dos médicos são os segurados enquanto pacientes, e os clientes das seguradoras são os pacientes enquanto segurados.


Ricardo Bechara Santos
Advogado especializado em direito de seguro
Sócio do Escritório Miguez de Mello Advogados
Acadêmico da ANSP – Academia Nacional de
Seguros e Previdência