De um tempo para cá tenho dedicado especial atenção ao estudo da jurisprudência. O Juiz diz o Direito ao caso concreto e soluciona os litígios; logo é ele quem faz o Direito, quem verdadeiramente o define.

Vale-se da doutrina? Sim. Mas a doutrina também se vale da jurisprudência. E nessa autopode-se do conhecimento jurídico, na prática, sempre há de se dar maior valor à jurisprudência, porque é ela quem diz o que é doutrina boa e aquilo em que a doutrina terá de se debruçar melhor para mudar.

Em certo sentido, a jurisprudência é a fonte por excelência porque nem mesmo a lei o será se a primeira, para o bem ou para o mal, não lhe der por assegurada essa condição. Pensando nisso é que resolvi trazer os estudos que faço das decisões judiciais do plano prático, como advogado, para o acadêmico, como pretenso estudioso do Direito.

Hoje, comentarei uma em que tive a oportunidade de atuar como advogado, postulando em defesa dos direitos e interesses do segurador sub-rogado nos direitos e ações do segurado, dono de carga, contra o transportador marítimo que a danificou no curso do cumprimento da obrigação de transporte internacional.

A sentença julgou parcialmente procedente o pleito de ressarcimento em regresso, reconhecendo a responsabilidade do transportador marítimo pelo sinistro, mas não por todos os danos e prejuízos. Os danos de armazenagem, embora cobertos pelo segurador, não foram imputados ao causador.

O Tribunal reformou a decisão reconhecendo o direito de o segurador sub-rogado receber integralmente o que pagou ao seu segurado, dono da carga, vítima original do dano causado pelo transportador. E recebimento integral também engloba os valores de armazenagem, riscos cobertos e igualmente indenizados.

Na Apelação Cível nº 1010852-34.2020.8.26.0562, a turma julgadora acordou “em 38ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento em parte ao recurso. V. U.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.”. 

Ao reformar a decisão, a turma julgadora consagrou importantes elementos de Direito dos Seguros, da sub-rogação, do ressarcimento em regresso e do princípio da reparação civil integral.

Merece, desde já, especial destaque a ementa do voto 37.760 (de 27.10.20210) do Ilustre Relator, Desembargador Mário de Oliveira, que diz:

AÇÃO REGRESSIVA Seguro vinculado a contrato de transporte marítimo Avarias da carga Ação ajuizada pela seguradora contra representantes de transportadora no Brasil – Hipótese em que, com o pagamento da indenização, a seguradora sub-rogou-se no direito da segurada em receber o valor devido – Responsabilidade objetiva da transportadora, incumbindo-lhe o ressarcimento integral do que foi pago à segurada Despesas com armazenagem Despesas comprovadas Valores devidos que devem corresponder àqueles pagos à segurada Súmula nº. 188, do STF. Ação julgada procedente Sucumbência a cargo da Ré – Recurso provido, em parte.

Não exagero quando afirmo que a ementa é breve catequese de Direito dos Seguros e Direito de Transportes, sobretudo daquele quando se afirma que: “com o pagamento da indenização, a seguradora sub-rogou-se no direito da segurada em receber o valor devido – Responsabilidade objetiva da transportadora, incumbindo-lhe o ressarcimento integral do que foi pago à segurada Despesas com armazenagem Despesas comprovadas Valores devidos que devem corresponder àqueles pagos à segurada Súmula nº. 188, do STF”

De se notar que o Ilustre Relator reconheceu a força da sub-rogação, o poderoso direito que dela deriva e, ao mesmo tempo, o dever de o transportador, autor de ato ilícito, causador de dano, ressarcir em regresso o que efetivamente devia.

Não raro, aqueles que resistem aos pleitos de ressarcimento promovidos por seguradoras sub-rogadas tentam desprestigiar a força da sub-rogação e a amplitude do direito de regresso.

Esquecem-se de figuras do Código Civil que tratam dos direitos de cessão de crédito, do dever de reparação civil integral, da própria sub-rogação legal (imprescindível para a saúde do negócio de seguro) e da Súmula 188 do Supremo Tribunal Federal.

O desejo de fugir do dever de reparação é tanto – o que compromete até mesmo a ordem moral, por assim dizer – que intervêm até em algo que não lhes diz respeito, pois antecede a própria obrigação que têm de cumprir: o contrato de seguro.

Sempre que um segurador indeniza um segurado, ele o faz em homenagem à ortodoxia do contrato de seguro e em respeito ao princípio do mutualismo, que se conecta intimamente aos princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos.

Um segurador não defende apenas os seus legítimos direitos e interesses, portanto, mas os de todo o colégio de segurados que representa. Por isso que, a rigor, toda indenização paga é correta e devida, levada a efeito após rigoroso processo de regulação. Se o causador de um dano se insurge contra algum ponto da indenização despendida à vítima, faz-se imperioso comprovar, de modo cabal, a razão do inconformismo, sob pena de haver mero casuísmo com o fim de desestabilizar a marcha regular do processo.

Tudo o que compõe o pagamento de indenização ao segurado, vítima do dano, é alvo de ressarcimento contra o causador. Ponto e basta. Somente o eventual o abuso de direito — aquele flagrante, comprovado, excessivo — pode eventualmente esvaziar parte do pleito de ressarcimento. O ônus de provar, porém, é exclusivo de quem o acusa.

Muitos tentam, com certa frequência, transformar litígios de responsabilidade civil em litígios indiretos de Direito de Seguros, levando a campo assuntos que não são próprios do Direito de Danos. Felizmente, fazem-no de modo atabalhoado, irrazoável e em vão, como aconteceu no caso de que tão bem tratou a decisão em estudo.

Quando se fala em responsabilidade civil, fala-se no causador do dano e no seu dever de reparar integralmente o prejuízo que causou à vítima, ou quem ocupar seu lugar em virtude de alguma disposição legal. Se o autor da ação for segurador sub-rogado na pretensão original da vítima, fala-se no ressarcimento integral daquilo que pagou a título de indenização. Nada além disso importa, muito menos questionamentos indevidos do clausulado de apólice.

Comprovadas as despesas e sendo firme o pagamento, o ressarcimento em regresso se impõe, revestido que é de invulgar importância social. Prestigiar o ressarcimento da indenização, quando efetivamente paga a quem de direito, é o caminho a ser seguindo.

Abram-se aspas:

“A seguradora Apelante diz que a armazenagem está incluída sob a rubrica “despesas” (fl. 55), na “Especificação da Apólice”, bem como na contratação de cobertura adicional (fl. 108). Ainda, em seu favor, lança mão do art. 786, do Código Civil, e da Súmula nº. 188, do STF: “O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro”.

Por sua vez, a Apelada aduz que a armazenagem não se trata de direito que o segurado teria, para sub-rogar à seguradora, assim como não há prova de que o segurado tenha pago pela armazenagem. Sustenta que decorreu de manutenção da mercadoria no depósito do operador portuário, por conveniência do segurado, de modo que indevido este ressarcimento. Ressalvado o entendimento em sentido diverso, as razões recursais merecem acolhida.

A responsabilidade do transportador é de natureza objetiva, vale dizer, assume ele a obrigação de entregar a coisa transportada no destino no mesmo estado de conservação em que a recebeu, o que não ocorreu no caso em tela. Nesse sentido, defende Sérgio Cavalieri Filho[1]: “O transportador tem a obrigação de entregar a mercadoria ao destinatário no estado em que a recebeu. A ressalva contida no recibo fornecido pela entidade portuária no momento da descarga do navio, acusando a avaria ou falta de mercadorias, é prova suficiente e idônea do dano. Cabe ao transportador, em tal caso, promover a vistoria ou formular o protesto adequado se quiser elidir a ressalva do recibo e provar ter entregue a mercadoria regularmente.”

Por isso, há que ser ressarcida a despesa com armazenagem, pois decorreu da necessidade de vistorias da mercadoria avariada. Da leitura do relatório de fls. 187/204 se conclui a demora na realização das vistorias das avarias, a se inferir pela relação direta entre os danos nos equipamentos e a referida despesa. Diante disso, e mercê dos artigos 754 e 756, ambos do Código[2] é cabível o ressarcimento integral em face do causador do dano, na espécie, a empresa Ré. Ademais, a jurisprudência remansosa dos Tribunais Pátrios corrobora com a tese do ressarcimento integral, o que restou ementado na Súmula nº. 188, do Supremo Tribunal Federal: “O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até o limite previsto no contrato de seguro.” Vale dizer que a Autora apresentou prova do pagamento à segurada (fls. 206/208), de modo que impugnações da Apelada neste sentido são inférteis.

Considerando estes aspectos, não há como deixar de reconhecer o direito de reparação integral da Autora contra a Ré, impondo-se nesse passo a reforma da decisão, neste ponto. Neste contexto, resta prejudicado o pedido de redimensionamento das verbas sucumbenciais. Por força da procedência integral da demanda, todas as verbas da sucumbência (custas, despesas processuais e honorários advocatícios) deverão ficar a cargo da Requerida. Fixam-se os honorários de sucumbência no importe de 11% (onze por cento) do valor atualizado da condenação, já considerado o trabalho adicional realizado na fase recursal. Ante o exposto, dá-se provimento, em parte, ao recurso para julgar inteiramente procedente a ação, e condenar a Apelada no pagamento da quantia de R$ 562.497,85 à Autora. Correção monetária e juros de mora nos termos fixados pela r. sentença. Sucumbência na forma acima especificada. Não se entrevê hipótese de majoração de honorários recursais (…) “

Fecham-se aspas

Daí os merecidos elogios à decisão colegiada, que muito bem aplicou figuras importantes do Direito dos Seguros dentro do quadro maior do Direito dos Transportes e, em especial, da responsabilidade civil do transportador marítimo de cargas.

Salvo casos muito extraordinários, ou se provar eventual abuso de Direito por parte do Segurador, o ressarcimento integral há de ser sempre a medida de rigor, devolvendo-se ao segurador sub-rogado tudo o que ele indenizou ao segurado por conta do dano causado pelo transportador.

Com objetividade e didatismo foi exatamente o que fez a decisão que ora se comenta e se aplaude.

[1] In “Tratado da Responsabilidade Civil”, 6ª edição, rev. atual, e ampl. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2004, pág.

404.

[2] Art. 754. As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos.

Art. 756. No caso de transporte cumulativo, todos os transportadores respondem solidariamente pelo dano causado perante o remetente, ressalvada a apuração final da responsabilidade entre eles, de modo que o ressarcimento recaia, por inteiro, ou proporcionalmente, naquele ou naqueles em cujo percurso houver ocorrido o dano.

 

*Paulo Henrique Cremoneze

É advogado com atuação em Direito do Seguro, sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, parceiro de SMERA-BSI, mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro pela Universidade de Salamanca (Espanha), membro da Academia Nacional de Seguros e Previdência, diretor jurídico do CIST, membro da AIDA e do IASP, presidente do IDT, colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna de Santos, autor de livros jurídicos de Direito do Seguro e de Direito dos Transportes. Coordenador da Cátedra de Transportes da ANSP.

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