Parte 1 Contrato de Seguro

Penso que o contrato de seguro seja o mais típico dos contratos aleatórios, em que pese as opiniões de alguns, respeitáveis diga-se desde pronto, que o qualificam como comutativo.

Assim, entendo porquanto o elemento considerável para qualificar a natureza jurídica de um contrato aleatório, distinguindo-o de um contrato comutativo, está na equivalência entre as prestações, eis que, enquanto os contratos tipicamente comutativos são timbrados pela equivalência real das prestações, nos contratos tipicamente aleatórios essa equivalência em regra não existe, justo em razão do risco que o caracteriza como seu elemento nuclear, razão pela qual ouso divergir do entendimento de que o fato de o segurador garantir o risco de que se ocupa o contrato seria o quantun satis para qualificá-lo como comutativo. O simples fato de o risco ser elemento essencial para a existência do contrato de seguro o afasta de qualquer natureza comutativa, até em função da mutualidade e dos cálculos de probabilidades que o regem, chamando para si a estatística e a ciência atuarial para orientarem a sua operação, dispensadas nos contratos comutativos.

É que a garantia conferida pelo contrato de seguro, desde a sua conclusão, embora represente uma das suas tônicas, não é ela, por si só, o elemento caracterizador de sua natureza jurídica, embora se possa vislumbrar, à primeira vista, algum matiz de comutatividade em alguma modalidade de contrato de seguro (a discutir, no seguro dotal puro, por exemplo). Enfim, a garantia fornecida desde a conclusão do contrato não retira a índole aleatória do contrato de seguro, a ponto de destroná-lo da sua sempre reconhecida natureza aleatória, conferindo-lhe uma tipicidade comutativa que ele efetivamente não tem. Realmente, o principal dever do segurador é o de prestar a garantia de que, havendo o sinistro, irá pagar um valor ao segurado ou beneficiário, porém, se não tiver que pagar esse valor em caso de não ocorrer sinistro, não retira do contrato a bilateralidade, nem a onerosidade, tampouco seu caráter aleatório, do contrário haveria somente a obrigação unilateral do segurado em pagar o prêmio.

De fato, conquanto no contrato de seguro o segurador oferece, ab initio, a garantia contra o risco assumido, que representa a sensação de conforto ao segurado de que a prestação financeira será dada em caso de sinistro coberto, as partes não sabem, de antemão, quem ao final terá vantagem ou prejuízo, pois a efetiva prestação do segurador é a entrega da indenização (nos seguros de dano) ou do capital segurado (nos seguros de pessoa), que sempre dependerá de um acontecimento futuro e incerto. Isto é, as partes, embora conheçam previamente o objeto (interesse legítimo do segurado) e o preço (prêmio), não sabem se e quando a efetiva prestação do segurador será dada, pois a álea ainda é a sua aba essencial. A garantia não representa, por si só, a efetiva prestação/obrigação do segurador como elemento diferenciador de sua natureza jurídica para os fins aqui colimados.

Demais disso, também não colhe bons frutos, permita-me vênia, o argumento daqueles que enxergam o contrato de seguro como comutativo pelo fato de a seguradora exercer, sistematicamente, a sua atividade como gestora da mutualidade e assim estabelecendo um sistema tal de provisionamento técnico, margem de solvência, capital mínimo, fundo garantidor, cosseguro, resseguro, retrocessão etc., que tornaria remota a sua insolvência e permitiria a ela conhecer e domar o risco nas suas entranhas. Não seria por isso, definitivamente, que o contrato de seguro se libertaria de seu caráter aleatório. Não há confundir a natureza do contrato com a da indústria a que pertence.

A propósito, Rubén S. Stiglitz, jurista argentino de nomeada e que se destaca mundo afora como estudioso do tema, seguindo as pegadas de outros grandes mestres, replica, respaldado por Vivante, afirmando não haver dúvidas de que a indústria de seguros tende a fazer-se cada dia mais equilibrada e prudente mediante uma apreciação estatística dos riscos e dos prêmios e um bem ordenado sistema de resseguro. Mas este ordenamento – acrescenta – muito longe está de excluir a vocação aleatória de cada um dos contratos de seguro. Os que pensam em contrário, diz ele, cometem o erro de confundir o contrato com as características da indústria a que pertence. Com efeito, prossegue o mestre, qualquer que seja o ordenamento industrial da empresa, o fato é que nenhum dos contratantes pode saber se sacará do contrato um ganho ou uma perda até que se verifique o evento, que é quantum satis, o que caracteriza o contrato aleatório (Stiglitz, Derecho de Seguros, editora Abeledo Perrot, Vol. I, pag. 126/127, edição 1996, Buenos Aires).

No mesmo sentido se pronuncia o não menos acatado Izaak Halperin, lembrando para aqueles que alegam que a exploração por uma empresa seguradora elimina a álea, perde de vista o contrato, confundindo-o com a organização para sua exploração industrial por uma das partes. Afirma o ilustre professor que, pelo contrário, essa organização supõe a álea, posto que se constitui para contratar em massa e minimizar por este sistema a álea. Ora, toda essa organização se dá exatamente em função do caráter aleatório do contrato de seguro. Não o fosse, toda essa preparação sistemática não seria necessária. O segurador, pois, para absorver o risco da indenização, estabelece uma mutualidade especialmente preparada.

Não seria pelo fato de o seguro consistir em uma mutualidade, especialmente organizada segundo a lei da estatística, que deveria receber o epíteto de contrato comutativo, muito pelo contrário, é justamente por ser o seguro a compensação dos efeitos do acaso pela mutualidade preparada segundo a lei dos grandes números (Albert Choufton), que faz dele um contrato tipicamente aleatório.

Aliás, o fatídico 11 de setembro, em que o terrorismo destruiu as torres Gêmeas em Nova York, reforçou, para a indústria de seguro mundial, o conceito de risco e a natureza aleatória do contrato de seguro.


Ricardo Bechara Santos

Advogado especializado em Direito do Seguro e sócio do Escritório Miguez de Mello Advogados.
Membro da Academia Nacional de Seguros e Previdência – ANSP