O contrato de seguro de vida previsto em nosso ordenamento jurídico com a denominação “Do Seguro de Pessoa”, ex vi legis, artigos 789 a 802,[1] encontra-se disciplinado também no PLC nº 29/2017, sob o título “Dos Seguros Sobre a Vida e a Integridade Física”, artigos 110 a 122, atualmente tramitando junto ao Senado da República aonde está dito da mesma forma que o diploma acima apontado que “capital segurado é livremente estipulado pelo proponente, que pode contratar mais de um seguro sobre o mesmo interesse, com o mesma ou diversas seguradoras”.[2] Na mesma linha, com algumas particularidades diferenciadas ele é tratado às inteiras no sobredito projeto acima referenciado.[3]

O projeto em pauta cuida em seu artigo 122 da necessidade, depois de um certo prazo – mais de 10 (dez) anos – da situação da renovação de seguros individuais – prevendo a hipótese de precedência de comunicação ao segurado  acompanhada de oferta de outro seguro, com antecedência mínima de noventa dias para a recusa de renovação, que, poderia, a meu sentir, ser ainda mais abrangente se tivesse expressamente disciplinado no texto em tela casos de cancelamento da apólice, quando o  segurado vinha renovando anualmente o seu seguro vida.[4]

Essa casuística é extremamente importante frente a hipóteses em que o  segurador cancela o seguro, independentemente de proceder à notificação ao segurado como reiteradamente se posiciona o Superior Tribunal de Justiça nos casos de atraso no pagamento do prêmio, quando exige que antes deste cancelamento haja uma notificação prévia, sob pena de se cuidar de ato que malfere o bom direito.

É verdade, que como acentuei alhures, em sede doutrinária, a súmula 616 STJ é por demais rigorosa e até draconiana quando determina que ” o atraso no pagamento do prêmio por parte do segurado convalida e converte esse ato na exigência da indenização securitária.”

Data vênia, entendo que tal fato extrapola e atropela princípios fundamentais do contrato de seguro – pagamento da indenização sem ter havido pagamento do prêmio -, porque, se por um lado tal procedimento é inerente à assunção do risco pelo segurador, de outro giro, não se pode exigir que a indenização securitária seja devida  uma vez que o segurador não pode obter enriquecimento ilícito pela falta de cumprimento da obrigação de uma das partes, vale dizer, do segurado que deixou de pagar sua obrigação para obter à indenização securitária prevista no contrato de seguro.

O que cabe, rigorosamente, na hipótese acima prevista é o que está previsto no artigo 475 do nosso Código Civil, que diz expressamente: ” A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perda e danos”.

Assim, cuida-se de uma única solução alvitrada pelo nosso legislador: “resolução do contrato” pelo inadimplemento – falta de pagamento do prêmio por parte do segurado, ou cumprimento da obrigação inadimplida, tal como ação de execução,[5] além da indenização por perdas e danos, independentemente da   opção eleita pelo segurador.

Impende sublinhar, que fora essas hipóteses determinadas em lei a imposição de indenização estampada no valor previsto na apólice de seguro chega a se constituir, a meu pensar, numa aberratio ictus, em sede cível, se me permitam expressar às escancaras os que militam na seara pertinente ao direito penal.

Imagine-se o caso do segurado estar com uma enfermidade incurável e a seguradora sabedora dessa situação, através de ato unilateral, depois de longos anos de contribuições, rectius, pagamento de prêmios, resolve cancelar o seguro quando aquele até por extrema boa-fé declina o seu real estado de saúde. Quid juris??? Não há no exemplo outrora aludido má-fé do segurador?

Existem princípios de ordem moral e jurídicos que, solidariamente, não devem permear esse tipo de relação contratual?

Pois, dentre as características jurídicas previstas no contrato de seguro, costuma-se afirmar que é um contrato de boa-fé, uberrimae bona fidei.[6]

Professor Humberto Ávila, em sua primorosa obra “Teoria dos Princípios”, quando, em sede de considerações introdutórias, enfatiza:

“É até mesmo plausível afirmar que a doutrina constitucional vive, hoje, a euforia do que se convencionou chamar de Estado Principiológico”. E, ato contínuo, arremata: “Trata-se, em especial e paradoxalmente, da efetividade de elementos chamados fundamentais – os princípios jurídicos”.[7]

Em verdade, estes princípios jurídicos também se esgarçam em regras comportamentais de grande valia para balizar o legislador na busca de objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, insertos no art. 3º, inciso I, da CF de 88, objetivando “construir uma sociedade livre, justa e solidária.

O direito se expressa por meio de normas. As normas se exprimem por meio de regras ou princípios. As regras disciplinam uma determinada situação: quando ocorre essa situação, a norma tem incidência. Para as regras vale a lógica do tudo ou nada (Dworkin). Quando duas regras colidem, fala-se “em conflito”; ao caso concreto uma só será aplicável (uma afasta a aplicação da outra). O conflito entre regras deve ser resolvido pelos meios clássicos de interpretação:  a lei especial derroga a lei geral. De sua vez, os princípios são mais amplos. Seu espectro é muito mais elástico que o das regras.[8] Cuida-se, aqui, de uma interpretação de um cunho mais teleológico, data vênia.

António Menezes Cordeiro, festejado jurista Português afirma que a dimensão complexa e contínua da atividade exigida ao segurador levou à formulação da teoria da gestão de negócio (Geschäftsführungs-theorie).[9] O nosso ordenamento jurídico, de sua vez, cuida da gestão de negócios nos artigos 861 a 875 do Código Civil.

Dessarte, princípios jurídicos securitários como o da anterioridade do risco, do interesse, da indenização em razão do sinistro, do pagamento do prêmio, do próprio lucro da seguradora se não ocorrer o sinistro resultante de uma atividade econômica acima lembrada e aduzida pelo autor lusitano, bem como comportamentos estribados na boa-fé dos contratantes, de lege lata, previsto em vários dispositivos do nosso Código Civil de 2002, – artigo 422 verbi et gratia –  entre outros, estão permeados em toda a estrutura jurídica da legislação de seguros.

No contrato de seguro ela, boa-fé, é ressaltada especificamente no artigo 765 do nosso diploma substantivo, que diz: ” O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a eles concernentes”.

Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, eminente jurista, em obra com outros renomados autores, ao discorrer sobre a Boa- Fé no Direito Brasileiro invocando precedentes do Superior Tribunal de Justiça, adverte: “Por exemplo, o dever de lealdade em:

[…] contrato de seguro de vida é renovado ano a ano, por  longo      período, não pode a seguradora modificar subitamente as condições da avença nem deixar de renová-las em razão do fator de idade, sem que ofenda os princípios da boa-fé objetiva, da cooperação, da confiança e da lealdade”.[10]

Às vezes, inversamente, ocorre o que entendem a maior parte da doutrina e dos julgados postos em pauta. Por exemplo, a seguradora sabendo que o segurado estava doente trata logo de cancelar o seguro, ignorando qualquer princípio comezinho de ética e boa-fé contratual. A juízo deste autor, obra com  dolus malus procurando evitar o pagamento de qualquer quantia, depois de inúmeros prêmios pagos pelo falecido segurado que ao longo de sua existência procurou deixar à família uma proteção ínsita nesse tipo contratual.

Segundo Moreira Alves, a definição que inspira o norte balizado pela boa-fé data do direito pós-clássico, relacionada aos contratos tutelados por ação de boa-fé (iudicium bona fidei), que conferiam ao juiz um poder de apreciação mais amplo do que nas ações de direito estrito (iudicium stricti iuris)”. Recorda o referido     jurisconsulto que a boa-fé se encontra no Título I das Institutas, do Imperador Justiniano.[11]

Aliás, estes adágios encontram-se impregnados em normas de conduta, viver honestamente (honeste vivere), não causar dano a outrem (alterum non laedere) e dar a cada um o que lhe pertence (suum cuique tribuere).

Este princípio, vale dizer, o da boa-fé está previsto no BGB (Código Civil Alemão) confeccionado em 1.900, através da cunhada expressão germânica Treu und Glauben – insculpida em seu § 242.

De outro giro, ensinam os jovens juristas Augusto e Bernardo Dahinten, ” a função social – referem-se aos Contratos de Seguros – decorre da ideia de solidariedade, a qual, na lição de Luiz Antonio Rizzatto Nunes, está vinculada à ideia de um “dever ético que se impõe a todos os membros da sociedade, de assistência entre seus membros, na medida em que compõe um único  todo social”. Acerca do tema, Bruno Miragem explica que “o princípio da solidariedade, de fundamento constitucional, estabelece uma autêntica orientação solidarista do direito, e impõe a necessidade de se  observar os reflexos da atuação individual perante a sociedade”.[12]

Enfim, é isto que se espera de todos os envolvidos no contrato de   seguro, nomeadamente de determinadas seguradoras que malgrado a essência do lucro ínsita neste contrato-tipo[13] deve ter como referencial o interesse de zelar pelos princípios básicos que se acrisolam no contrato de seguro vida o mais exuberante dos princípios, vale dizer, o da boa-fé.

[1] Código Civil Brasileiro de 2002.

[2] Art.110 acima citado previsto no PLC nº 29/2017.

[3] Artigos 110 a 122 do sobredito PLC.

[4] Art. 122 do PLC nº 29/2017.

[5] Art. 585, inciso XII do CPC, combinado com o art. 27 do Decreto-Lei, nº 73/66.

[6] O Seguro no Direito brasileiro, Voltaire Marensi, 9ª edição, Lumen/Juris, pág. 47.

[7] Obra citada, 16ª edição, Malheiros Editores, 2015, pág. 43.

[8] Âmbito Jurídico.com.br. O seu portal jurídico na Internet. princípios e regras:diferenças.

[9]. Direito dos Seguros, autor citado, 2ª edição, Editora Almedina, pág. 575.

[10] Direito Civil, Diálogos entre a Doutrina e a Jurisprudência, Coordenação Luis Felipe Salomão e Flávio Tartuce, Ed. Atlas, 2017, autor citado, pág. 194.

[11]  Apud, Maurício Gravina, Princípios Jurídicos do Contrato de Seguro, 2ª edição, Funenseg, pág. 65.

[12] Os Contratos de Seguro e o Código de Defesa do Consumidor, autores citados, Editora Prismas, 2018, 1ª edição, pág 110.

[13] Orlando Gomes, Contrato de Adesão, Ed. Saraiva, s/data, pág.92.

 

*Voltaire Giavarina Marensi

É advogado e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Coordenador da Cátedra de Direto do Seguro e Acadêmico da Academia Nacional de Seguros e Previdência – ANSP.

 

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