Cada vez mais se tem notícias de associações que, desafiando os poderes constituídos, atuam sem cerimônia e à margem da lei, oferecendo coberturas de riscos a consumidores incautos. Atuam sem a devida autorização governamental, sem as garantias das provisões ou reservas técnicas, não estão sujeiras ao sistema de capital mínimo, fundo garantidor e margem de solvência, além de não serem fiscalizadas e pagarem tributos ao governo.
Violam a lei da concorrência, cometendo crime contra o consumidor que, atraído por falsas comodidades e preços reduzidos, é exposto a riscos e lesões financeiras das mais diversas matizes, sem as necessárias e imprescindíveis garantias do único seguro possível, do seguro oficial, do seguro legal, sem a gestão competente da verdadeira sociedade seguradora, sem a qual a solidariedade buscada não encontra a mínima efetividade, jamais se alcançando a tão eminente função social do seguro legal.
Tais práticas tratam-se não só de patente ilegalidade, como de inadmissível retrocesso aos tempos medievais das “tontinas” que, sem regulação, tantas lesões ocasionaram aos consumidores de seguro. Essa época configurou a mais completa forma de especulação à sombra do seguro, cuja exploração constituiu um verdadeiro ônus para o instituto, dificultando-lhe a marcha ascendente, retomada após o combate àquelas malfadadas “tontinas”, operação primitiva, rudimentar e espúria pela qual cada prestamista se comprometia, sem garantias atuariais, a entregar uma soma determinada que, uma vez acumuladas, seriam ao fim repartidas entre os sobreviventes, se não acabassem se matando.
Nem é preciso ir tão longe. No ano passado mesmo, no auge da crise, se descobriu prática igualmente prejudicial. Sem as necessárias garantias atuariais, a prática conhecida como a “Pirâmide da Madoff” foi tão abominável que levou seu idealizador (Bernard Madoff) à prisão, pelos graves e terríveis prejuízos financeiros aos seus usuários, tudo em razão da ausência de regulação e fiscalização do Estado. É claro que não se pode aqui afirmar que os dirigentes de tais associações estejam imbuídos de má-fé, muito ao contrário, podem até mesmo estar movidos de algum altruísmo e boas intenções, mas o que se quer aqui, apenas para efeito de argumentação ilustrativa, é mostrar que as atividades financeira e de seguro não podem prescindir jamais do controle do Estado e das necessárias garantias atuariais.
É, pois, manifesta a apreensão sobre a atividade desenvolvida por tais associações. Pelo germe da impunidade e pela velocidade em que a prática se prolifera, chegou ao ponto de a Fenaseg se ocupar, dentre os assuntos de sua pauta, com “a atividade de algumas associações e cooperativas que vêm desenvolvendo operações securitárias de forma irregular, sem a devida autorização da Susep”.
Por diversas vezes a Comissão de Assuntos Jurídicos da Fenaseg (CAJ), por mim presidida, examinou reclamações semelhantes, concluindo sempre pela irregularidade dessas atividades. Por isso, sempre recomendamos uma atuação conjunta entre Fenaseg, Fenacor, Ministério Público e Susep, esta que, finalmente, vem se pronunciando no sentido de que estará adotando providências junto ao MP, prometendo denunciar essas entidades que, segundo se tem observado, comercializam “produtos” semelhantes aos contratos de seguro e alguns estipulantes que, segundo se informa, também estariam agindo da mesma maneira.
Realmente, as atividades e “produtos” dessas associações, pelo exame que se faz de seus objetivos, em tudo se confunde com um contrato de seguro ou operação de seguro, já que todos os elementos desse contrato estariam ali alinhados, ou seja: (a) o risco, como evento incerto e futuro; (b) sua transferência a uma instituição não autorizada; (c) mediante o pagamento de um prêmio, (d) e com a obrigação da instituição receptora do risco de indenizar a cedente, (e) na ocorrência de um “sinistro”.
Com efeito, reza o Decreto-Lei 73, logo no pórtico de seu art. 1º, que todas as operações de seguros privados realizadas no País, de coisas, pessoas, bens, responsabilidades, obrigações, direitos, garantias, crédito etc., exceto os seguros do âmbito da previdência social (art. 3º), ficarão subordinadas ao próprio DL 73, por isso o seu art. 2º estabelece que o controle do Estado se exerça pelos órgãos nele instituídos (CNSP, Susep), reservando ao CMN a competência para baixar Resoluções sobre as diretrizes para a aplicação das reservas ou provisões técnicas das sociedades seguradoras, aparatos que decerto essas agremiações irregulares não possuem, muito menos toda aquela organização e ônus para administração do risco que se impõem às sociedades seguradoras autorizadas a operar, desde a constituição de reservas e provisões, capitais mínimos, margem de solvência, cosseguro, resseguro, retrocessão etc., cujo descumprimento das normas lhes acarretam os pesados gravames sancionadores que o sistema repressivo lhes impõe, enquanto essas associações, no limbo de sua clandestinidade, vão de tudo escapando ilesas.
Tudo, é claro, sem a intermediação de corretor de seguro, e decerto com lesão ao fisco (IOF, ISS, INSS, IR etc. não recolhidos) e à atividade formal das sociedades seguradoras e dos corretores de seguro, Lesionando, enfim, atividades e profissões regulamentadas com ameaça aos empregos gerados no setor. Penso que a denúncia, por qualquer cidadão, quanto mais pelos órgãos e organismos interessados, deveria ser encaminhada à Susep, considerando caber à referida autarquia o poder de polícia para apurar e cominar sanções pecuniárias aos infratores, lembrando de que na Resolução CNSP nº. 60/2001 há previsão expressa de processo sancionador contra as pessoas físicas ou jurídicas que realizarem operações de seguro sem a devida autorização (arts. 8º e 9º), que também avaliará a possibilidade de acionar o Ministério Público visando a abertura de processos administrativos e ou judiciais, inclusive criminais, em defesa da concorrência, do erário público e da própria sociedade na medida em que também se apure a tipificação de delitos por exercício irregular de profissão ou atividade.
Deve-se lembrar também que a Susep, por exemplo, a pretexto de regular o “seguro de garantia estendida”, sempre se pronunciou no sentido de coibir operação reservada às sociedades seguradoras por quem não tenha sido para tanto autorizado.
Nem se diga que tais entidades pudessem estar alforriadas para a prática ilegal de atividade de seguro sem a devida autorização estatal, só pelo fato de estarem, algumas, organizadas sob a forma de cooperativas e, como tais, liberadas para usurparem atividades só permitidas sob dirigismo estatal, como soe ser a atividade de quem opera seguro, pela própria natureza e peculiaridade de que se reveste a operação.
Não é porque o art. 5º, inciso XVIII, da Constituição Federal estabelece, dentre os direitos fundamentais, que “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”, que tais associações possam sair por aí usurpando, impunemente, atividades regradas, pois o próprio texto constitucional condiciona a atuação das cooperativas aos “termos da lei”. E lei há, e com status de Lei Complementar (DL 73/66) determinando que a atividade de seguro, mesmo que explorada por uma cooperativa, depende de autorização estatal e da submissão a todos os requisitos exigidos para uma seguradora organizada como Sociedade Anônima, sob pena de se instalar uma odiosa vantagem competitiva no mercado de seguros.
Criado recentemente como Lei Complementear (LC nº 130, de 17/04/09, DOU de 17/04/09), há o projeto que, dispondo sobre o Sistema de Crédito Cooperativo, assim estabelece, logo no seu limiar:
“Art. 1o As instituições financeiras constituídas sob a forma de cooperativas de crédito submetem-se a esta Lei Complementar, bem como à legislação do Sistema Financeiro Nacional – SFN e das sociedades cooperativas.
§ 1o As competências legais do Conselho Monetário Nacional – CMN e do Banco Central do Brasil em relação às instituições financeiras aplicam-se às cooperativas de crédito.”
A ordem constitucional não concebeu a liberdade de associação para atuação ilícita, vedado o registro de atos constitutivos de pessoas jurídicas, quando contrariar a licitude, a moralidade, a segurança e a ordem pública e social, assegura-nos o mestre PINTO FERREIRA, em seus Comentários à Constituição Brasileira. E o funcionamento das cooperativas, como depende de lei, pode e deve sofrer fiscalização da União, através do Bacen ou de qualquer órgão assemelhado, como a Susep, vis a vis as cooperativas de crédito e as cooperativas de planos saúde.
Com efeito, o DL 73/66 só autoriza a operação de seguro por cooperativa no âmbito dos seguros saúde, agrícola e de acidentes do trabalho, porém mediante a devida autorização estatal e cumprimento de todas as demais exigências, seguida de fiscalização e de todo o sistema de garantias, tal como advertido desde o preâmbulo. É o que se colhe do seu art. 24, c/c artigo 36 c/c artigo 113, todos do Decreto Lei 73/66, que assim dispõem, in verbis:
“Art. 24. Poderão operar em seguros privados apenas Sociedades Anônimas ou Cooperativas, devidamente autorizadas.
Parágrafo único. As Sociedades Cooperativas operarão unicamente em seguros agrícolas, de saúde e de acidentes do trabalho.”
“Art. 36. Compete à Susep, na qualidade de executora da política traçada pelo CNSP, como órgão fiscalizador da constituição, organização, funcionamento e operações das Sociedades Seguradoras:
a) processar os pedidos de autorização, para constituição, organização, funcionamento, fusão, encampação, grupamento, transferência de controle acionário e reforma dos Estatutos das Sociedades Seguradoras, opinar sobre os mesmos e encaminhá-los ao CNSP;
b) baixar instruções e expedir circulares relativas à regulamentação das operações de seguro, de acordo com as diretrizes do CNSP;
c) fixar condições de apólices, planos de operações e tarifas a serem utilizadas obrigatoriamente pelo mercado segurador nacional;
d) aprovar os limites de operações das Sociedades Seguradoras, de conformidade com o critério fixado pelo CNSP;
e) examinar e aprovar as condições de coberturas especiais, bem como fixar as taxas aplicáveis;
f) autorizar a movimentação e liberação dos bens e valores obrigatoriamente inscritos em garantia das reservas técnicas e do capital vinculado;
g) fiscalizar a execução das normas gerais de contabilidade e estatística fixadas pelo CNSP para as Sociedades Seguradoras;
h) fiscalizar as operações das Sociedades Seguradoras, inclusive o exato cumprimento deste Decreto-Lei, de outras leis pertinentes, disposições regulamentares em geral, resoluções do CNSP e aplicar as penalidades cabíveis;
i) proceder à liquidação das Sociedades Seguradoras que tiverem cassada a autorização para funcionar no País;
j) organizar seus serviços, elaborar e executar seu orçamento.”
“Art. 113. As pessoas físicas ou jurídicas que realizarem operações de seguro, co-seguro ou resseguro sem a devida autorização, no País ou no exterior, ficam sujeitas à pena de multa igual ao valor da importância segurada ou ressegurada”.
Em razão da infração cometida, a Susep proporá, decerto, a aplicação da penalidade prevista nos artigos 8º e 9º da Resolução CNSP nº. 60/2001:
“Art. 8° A sanção administrativa de multa será aplicada à pessoa física ou jurídica que vier a realizar operações de seguro e co-seguro sem autorização, no País ou no exterior”.
”Art. 9º A sanção administrativa de multa a que se refere o art. 8º será aplicada no valor igual ao da importância segurada.
Parágrafo único. Na impossibilidade de se apurar a importância segurada, a sanção será aplicada com base no valor máximo previsto no art. 111 do Decreto-Lei nº. 73, de 21 de novembro de 1966”
É esse o resumo, em apertada síntese, das considerações que me ocorrem sobre tão grave tema.
Ricardo Bechara Santos
Advogado de seguros;consultor Jurídico;
sócio do escritório Miguez de Mello Advogados;
Acadêmico da ANSP.