Resumo

O presente trabalho pretende demonstrar o desacerto que consta em um projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputados e, que, hoje, se encontra no Senado da República. Trata-se do projeto de lei, sob número 29/2017, que revoga o instituto do seguro e de sua prescrição previsto no Código Civil de 2002. O dispositivo que se combate por ferir norma constitucional e próprios dispositivos do Código Civil em sede de direito de família, diz respeito à proteção que se deve dar à união estável em dispositivos insertos na nova lei de seguros, que, em um capítulo que trata do tema dos seguros sobre a vida e a integridade física, concede privilégios ao cônjuge supérstite em detrimento do companheiro (a) no que tange ao instituto da união estável previsto, quer na nossa Constituição Federal, quer em nossa legislação ordinária. Decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça dão guarida à tese sustentada pelo autor no presente artigo.

 Introdução

O projeto de lei número 29/2017, aprovado pela Câmara Federal, hoje no Senado da República, cuida do contrato de seguro revogando este Capítulo no Código Civil além de algumas disposições atinentes à área que trata da prescrição neste contrato.

O ponto, no entanto, que quero focalizar diz respeito à situação do companheiro e da pessoa separada, que dentro deste projeto se encontra no Título III, sob a rubrica “Dos Seguros sobre a Vida e a Integridade Física”.

A relevância deste tema merece data vênia, de lege ferenda, ser parcialmente reformulado o texto do artigo, a seguir transcrito, como atualmente está redigido e proposto no projeto no Título acima negritado, pois, se assim aprovado, irá atentar contra o que hoje se construiu ao longo do tempo em nossa legislação, quer em sede constitucional, quer em sede de legislação ordinária.

Deveras, o legado securitário em sede de seguro sobre a vida, quando cuida do companheiro, na redação conferida pelo § 2º, do artigo 113 do sobredito projeto de lei, confere a este, pasmem!!! “A metade do que caberia ao cônjuge”. Tal dispositivo que será objeto de uma análise mais aprofundada no decorrer desta exposição carece de constitucionalidade e de uma redação de melhor rigor técnico-jurídico.

Diz o sobredito artigo 113 do PLC nº 29/2017:

“Na falta de indicação do beneficiário, não prevalecendo ou sendo nula a indicação efetuada, o capital segurado será pago ou, se for o caso, será devolvida a reserva matemática, por metade, ao cônjuge, (e o companheiro????? omissis), se houver e o restante aos demais herdeiros do segurado.

  • 1º …………..
  • 2º Se o segurado for separado, ainda que de fato, caberá ao companheiro a metade que caberia ao cônjuge”. (grifo nosso). Grifo nosso.

Assim, a meu sentir, esta norma legal está visceralmente contra o que o moderno Direito de Família conseguiu outorgar ao companheiro, notadamente em se cuidando do instituto constitucional da “união estável”.

  1. Características da união estável

O que se pretende com este trabalho é convidar a atenção do legislador e da nossa sociedade, evitando que se cometa um grave retrocesso no Direito de Família. Pois, como preleciona a jurista e eminente professora Maria Helena Diniz, “a proteção jurídico-constitucional recai sobre uniões matrimonializadas e relação convivências more uxorio, que possam ser convertidas em casamento”[1].

A “união estável”, que o projeto em pauta denomina como companheiro, aliás, com expressiva e larga repercussão na ordem econômico-financeira como acontece com o legado do capital segurado em sede de contrato de seguro sobre a vida e a integridade física – artigo 110 do PLC 29/2017 -, irradia, no dizer de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, “suas consequências em diferentes campos, projetando-se nas relações patrimoniais, de índole econômica, e também nas relações pessoais, domiciliadas no âmbito interno da relação mantida pelo casal e em muito se assemelham aos efeitos do casamento”.[2]

Mais, sob o ponto da ótica quanto aos aspectos constitucionais, ensina Maria Berenice Dias, ” ainda que a união estável não se confunda com o casamento, ocorreu a equiparação das entidades familiares, sendo todas merecedoras da mesma proteção. O fato de mencionar primeiro o casamento, depois a união estável e, por último, a família monoparental não significa qualquer preferência nem revela uma escala de prioridade.[3] Grifo da autora.

Assim, não se admite mais somente focalizar o que disse alhures o eminente jurisconsulto Pontes de Miranda, em sua celebrada e imorredoura obra Tratado de Direito Privado, quando ao falar sobre a união conjugal na forma primitiva, doutrinou:

“A família pode ser monogâmica ou poligâmica, conforme a aproximação sexual se faz entre um homem e uma mulher, viri et mulieris coniunctio, ou entre um homem e várias mulheres (os escritores canonistas chamavam polignecia, cf. MONTE, Direito eclesiástico, II, 203; melhor monandria), ou uma mulher e vários homens (poliandria)”.[4]

De fato. Secundada nos ensinamentos de Fabíola Santos Albuquerque, Maria Berenice Dias, adverte que “o novo modelo de família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo nova roupagem axiológica ao direito das famílias.” Grifo da autora.[5]

Aliás, a eídola, criada por Epicuro “admitia que as imagens visíveis procedem de minúsculas formas materiais, aonde os deuses aparecem como projeções do ideal epicurista de uma vida plenamente feliz.”[6]

Hoje, longe de se buscar somente felicidade nas ligações afetivas, as famílias democráticas, no dizer de Maria Celina Bodin de Moraes e Ana Carolina Brochado Teixeira, estão configuradas através de estruturas as mais diversas “em que a dignidade das pessoas que a compõem é respeitada, incentivada e tutelada. Do mesmo modo, a família “dignificada”, isto é, conformada e legitimada pelo princípio da dignidade humana é, necessariamente, uma família democrática”.[7]

Dessarte, a norma constitucional de 88 ao tratar da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso é lapidar ao dizer no artigo 226, que “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. (EC nº 66/2010). E ao dar proteção aos conviventes diz a nossa Lei Magna no artigo 226, § 3º, verbis: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”

De sua vez, o artigo 1.571 do Código Civil preceitua:

 “A sociedade conjugal termina:

  • …………
  • …………
  • pela separação judicial;
  • pelo divórcio.”

Ao cuidar da paridade entre cônjuges e companheiros omitida na ordem de vocação hereditária inserta no artigo 1.829 do Código Civil, o ministro Luis Roberto Barroso, em leading case julgado pelo Supremo Tribunal Federal, entendeu que, tanto para companheiros quanto para cônjuges, deve ser aplicado este dispositivo legal objetivando preservar a segurança jurídica.

Aliás, ao ensejo dos comentários ao artigo 1.790 do Código Civil que fala da sucessão dos companheiros, Mauro Antonini, advertiu:

“Nos aspectos em que as famílias, oriundas do casamento ou da união estável, são semelhantes, como é o caso das relações afetivas que geram, não pode haver tratamento legal diferenciado. O vínculo familiar, de afeto, solidariedade e respeito, devem ser o norte do legislador infraconstitucional na disciplina da ordem de vocação hereditária. “[8]

  1. Da violação do dispositivo do PLC frente a julgados do STF e STJ

Dessarte, o que se pretende neste trabalho é destacar que se for aprovado o projeto em pauta como está atualmente redigido se estará cometendo e se perpetrando um retrocesso ao direito de família, além de uma flagrante inconstitucionalidade, bem como uma visceral violação a entendimentos já pacificados em nossos Tribunais Superiores, quer no STF, quer no STJ, no sentido de que o inciso II do artigo 1.829 do Código Civil deve ser lido e aplicado na linha de “que não há espaço legítimo para o estabelecimento de regimes sucessórios distintos entre cônjuges e companheiros, já que a lacuna criada com a declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC/2002 deve ser preenchida com a aplicação do regramento previsto no artigo 1.829 do CC/2002. Logo, tanto a sucessão de cônjuges como a sucessão de companheiros devem seguir, a partir da decisão desta Corte, o regime atualmente traçado no artigo 1.829 do CC/2002” (RE 878.694/MG, relator Ministro Luis Roberto Barroso).[9]

No mesmo diapasão, no recurso especial número 1.332.773, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, citando decisão do ministro Barroso disse “que as leis relativas ao regime sucessório nas uniões estáveis foram, portanto, progressivamente concretizando aquilo que a CF/1988 já sinalizava: cônjuges e companheiros devem receber a mesma proteção quanto aos direitos sucessórios, pois, independentemente do tipo de entidade familiar o objetivo estatal da sucessão é garantir ao parceiro remanescente meios para que viva uma vida digna”.[10]

Assim, quando se trata de verba securitária em sede de seguro de vida – morte do segurado – embora não se considere como uma herança[11] de vez que o seguro é jure próprio, o capital segurado embora livremente estipulado pelo segurado não pode “fugir” da sistemática traçada pelos Tribunais Superiores, vale dizer, desprezando-se entendimento consolidado de que o companheiro tem os mesmos direitos do cônjuge supérstite.

Em assim sendo, se adotarmos o entendimento expresso previsto no PLC nº 29/2017, em seu artigo  113 caput, notadamente de seu  parágrafo segundo acima transcritos haverá, sem dúvida, um retrocesso além de uma visceral afronta ao que se decidiu e já se consolidou, quer em sede doutrinária, quer em sede jurisprudencial. 

  1. Conclusão

Embora o seguro de vida não entre na ordem de vocação hereditária por se cuidar de um direito próprio que não é objeto de partilha, a legislação extravagante não pode sufragar entendimento contra legem, como é o caso do dispositivo legal objeto destes comentários, sob pena do instituto jurídico tratado em sede de contrato de seguro violar, em suas inteiras, normas de proteção ao Direito de Família albergadas em julgamentos já pacificados nos Tribunais Superiores que dão inteira guarida à união estável.

Desta forma, a norma inserta no artigo 113 e seu respectivo § 2º, do Projeto de Lei número 29, de 2017, que desde 12/04/2017 se encontra no Senado Federal, se aprovada como está redigida pode não só gerar um retrocesso diante dos julgados já pacificados nos Tribunais Superiores no que se refere a verba do capital segurado aos companheiros dos segurados, como também, o que é mais grave, pode ferir de morte a igualdade existente entre dois institutos legais, vale dizer, a união estável e o casamento.

Ademais, o que se quer em sede de contrato de seguro de vida é proteger todos aqueles que vivam com o segurado e que com sua morte, não sejam privados de ter uma vida digna em consonância com o nosso atual sistema no moderno Direito de Família.

É o que penso, sob censura dos doutos.

Porto Alegre 2017

[1] Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. 5. Direito de Família, 22ª edição, Editora Saraiva, pág. 354.

[2] Chaves, Cristiano e Rosenvald, Nelson. Direito das Famílias, 3ª Edição, Lumen Juris, pág. 474.

[3] Dias, Maria Berenice, Manual de direito das Famílias, 11ª edição, Revista dos Tribunais, págs. 240/241.

[4] MIRANDA, Pontes de, Tratado de Direito Privado, vol. 7, BORSOI, Rio de Janeiro, 1971, p.175.

[5] Autora e obra citada, pág. 138.

[6]  Röd, Wolfgang. O Caminho da Filosofia, tradução Ivo Martinazzo, Editora UNB, vol. 1, 2014, págs. 271/272.

[7] Comentários à Constituição do Brasil. In, J.J. Gomes Canotilho e Outros, Editora Saraiva/Almedina, 2013, págs. 2117/2118.

[8] Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. Coordenador Ministro Cezar Peluso, 4ª edição, Manole, p. 2.100.

[9] Recurso Especial nº 1.337.420-RS. Site STJ Documento 75404739.

[10] Recurso especial n° 1.332.773-MS. Site STJ. Documento 37313339.

[11] Art. 794 do Código Civil e art. 114 do PLC nº 29/2017.

Voltaire Giavarina Marensi

É advogado e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Coordenador da Cátedra de Direto do Seguro e membro da Academia Nacional de Seguros e Previdência – ANSP.

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