Com o advento do PLC 29/2017, hoje no Senado Federal, que dispõe sobre normas de Seguro Privado revogando toda a parte de Seguro do Código Civil, há, entre algumas incoerências, a meu juízo, um artigo sob número 103 inserto na parte que cuida do Seguro de Responsabilidade Civil, disposição esta de fragrante antinomia com o bom senso e a boa dogmática do ordenamento processual, data vênia.
Diz o artigo referenciado:
” Art. 103. Os prejudicados poderão exercer seu direito de ação contra a seguradora, desde que em litisconsórcio passivo com o segurado”.
Assim, quando há franquia na apólice de seguro automóvel e o segurado entende que a culpa é do terceiro, como fica a questão?
Fatalmente, não há que se falar em litisconsórcio entre o segurado e terceiro prejudicado, já que o artigo 113 do CPC não agasalha em seu conteúdo a mínima possibilidade de conciliação entre o preceituado no artigo acima transcrito e o instituto legal litisconsorcial.
No litisconsórcio facultativo, ou ad adjuvandum, como ocorre quando a seguradora comparece em juízo para ajudar o segurado em demanda que o terceiro prejudicado move contra este existem três hipóteses, na tradicional expressão de Machado Guimarães, que caracterizam esta figura processual, a saber: ” a comunhão de interesse (inciso I), a conexão de interesses (inciso II) e a afinidade de interesses (inciso III).”[1]
No caso do dispositivo subsumido no artigo em tela introduzido no sobredito PLC, há vedação velada no sentido de que o segurado possa exercitar seu direito postulatório contra o terceiro, pois se este artigo – o art. 103 – veda ação autônoma do terceiro prejudicado que deverá para ajuizar sua demanda contra a seguradora estar sempre atrelado ao segurado, ipso fato, este não terá jamais ação direta quer contra sua seguradora, quer contra o terceiro que a juízo daquele teria sido o responsável pelo evento.
Ademais, existem situações outras que deixam segurados preocupados e inseguros com o que possa acontecer ao final da liquidação de um processo de sinistro de seguro automóvel, notadamente, no que diz respeito em saber se o valor da apólice de seguro será corrigido enquanto, por exemplo, tramita ação em que o terceiro vitimado promove contra aqueles.
A situação sofre, ainda, maior perplexidade quando o segurado se julgando prejudicado no sinistro em que se envolveu com o terceiro ingressa no Juizado Especial buscando se ressarcir do valor da franquia que a seguradora não pagará em razão do que foi avençado no contrato de seguro.
Tal fato pode resultar na contestação do terceiro conjugado com um pedido contraposto deste levando-se em consideração que, neste segundo ato processual, o segurado em sede de Juizado Especial não poderá requerer a denunciação da lide a teor do inciso II, do artigo 125 do Código de Processo Civil.
Dessarte, embora o § 1º do sobredito inciso II do artigo 125 do CPC determine expressamente que “o direito regressivo será exercido por: ação autônoma quando a denunciação da lide for indeferida, deixar de ser promovida ou não for permitida”, o fato é que o segurado não poderá no pedido contraposto “chamar” à seguradora para, salvante melhor entendimento, figurar como litisconsorte ad adjuvandum para colaborar na postulação do interesse de seu segurado.
Neste sentir, em que pese à jurisprudência do STJ ter assentado de que “a não utilização da denunciação da lide, ou tê-la obstada, apenas priva a parte de obter de imediato um título executivo contra o obrigado regressivamente, mas não lhe veda propor ação autônoma contra quem eventualmente lhe tenha lesado (STJ, Resp 1.332.112/GO, 4ª Turma, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 21.03.2013, Dje 17.04.2013)”,[2]não faz com que o segurado se sinta confortável no pleito que já estava tramitando alhures, mormente porque já existe uma ação em curso e o iter processual não mais permite outro procedimento que não seja a ciência da lide ao segurador. Vide, de lege lata, o que diz o § 3º do artigo 787 do Código Civil, verbis:
“Intentada a ação contra o segurado, dará este ciência da lide ao segurador”.
Ademais, vale sublinhar, o nosso Código Civil, quando cuida do seguro de responsabilidade civil trata do tema em um único dispositivo, ou seja, o artigo 787, o que felizmente não é o caso do PLC nº 29/2017, que contém ao menos 5 (cinco) artigos, aliás, ( o PL 3.555/2004 – projeto original – resultado do PLC nº 29/2017, salvo engano, cuidava do tema em 15 artigos), tal a relevância do instituto no direito moderno.
Impende ressaltar, ainda, que o § 4º do artigo 103 do PLC 29/2017, malgrado sua atécnia no caput deste artigo, tem uma melhor redação, a meu sentir, do que se encontra atualmente corporificado no § 2º do Código Civil que, literalmente, proíbe o segurado de adotar qualquer procedimento que reconheça sua responsabilidade, quer quanto ao evento em si, quer quanto ao terceiro prejudicado, salvante anuência expressa do segurador.
Neste particular, de lege ferenda, a norma inserta no § 4º do artigo 103, diz, o seguinte:
“Salvo disposição em contrário, a seguradora poderá celebrar transação com os prejudicados, o que não implicará o reconhecimento de responsabilidade do segurado, nem prejudicará aqueles a quem é imputada a responsabilidade”.
Para que se evitem fraudes, diz José Fernando Simão, ou eventuais conluios entre o segurado e o terceiro vítima do dano, a lei proíbe que o segurado reconheça sua responsabilidade no curso da demanda que lhe é movida, bem como realize uma transação (judicial ou extrajudicial), ou ainda, pague diretamente os prejuízos (CC, art 787,§ 2º). Se o fizer, poderá a seguradora negar-se a indenizar o terceiro, tendo o segurado que assumir tais valores. É uma proteção à seguradora sem a qual estariam abertas as portas para diversos tipos de fraude (José Fernando Simão, Direito Civil – Contratos, Atlas, 2005, vol 5, p. 193).[3]
Quid Jures, quando o segurado promove a interrupção da prescrição, e, ato contínuo, na falta de manifestação da seguradora ingressa com uma ação de cobrança contra esta para receber o valor do seguro e ela, seguradora, comparece na fase de conciliação apenas para ofertar o valor da apólice. Como se resolve esta situação? O segurado terá direito ao valor puro fixado na apólice de seguro, ou haverá a possibilidade de pleitear junto ao segurador o valor corrigido do dano quando do pagamento da quantia determinada na condenação daquele?
Ao tratar do princípio indenitário Bruno Miragem, preleciona que a “função do seguro é a de garantir a indenização do interesse protegido, não podendo servir para dar causa a um acréscimo patrimonial ao segurado em decorrência do sinistro, limitando a liberdade contratual no tocante a estipulação do valor do interesse segurado.”[4]
Não se trata da máxima, venia concessa, de que nos adverte Maurício Salomoni Gravina, na qual “o segurado não pode enriquecer na ocasião do sinistro”, na feliz expressão de Jean Bigot em seu Tratado de Direito dos Seguros. (Traité de Droit des Assurances, Tome 3).[5]
A verdade é que o legislador ao contemplar um instituto jurídico de enorme importância como é o caso do seguro de responsabilidade civil foi por demais, parcimonioso, quer com o que atualmente existe em nosso ordenamento jurídico – um único dispositivo legal (artigo 787 do CC), quer desatento quando, de jure constituendo, a matéria se encontra desajustada com a verdade formal, data vênia, em diploma legal que cuida do tema em pauta.
Ainda bem, que num verdadeiro ativismo judicial o Superior Tribunal de Justiça tem entendido que a correção monetária deve incidir a partir da celebração do contrato, tal como disposto em sedimentada jurisprudência da Corte, sob pena de deixar os segurados em uma situação de extrema preocupação com o que possa acontecer no desfecho das ações aforadas por terceiros malgrado aqueles, vale dizer, os segurados entendam que tenham sido violados em seus interesses patrimoniais.
Ademais, o “Superior Tribunal de Justiça consagrou entendimento de que nas indenizações securitárias, a correção monetária incide desde a data da celebração do contrato até o dia do efetivo pagamento do seguro, pois a apólice deve refletir o valor contratado atualizado”.[6]
“A jurisprudência deste Tribunal Superior é no sentido de que, nas ações que buscam o pagamento de indenização securitária, os juros de mora devem incidir a partir da data da citação da seguradora, visto se tratar de eventual ilícito contratual.” Passim, (AgRG no Resp 1328730/SP, Rel Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 21/06, DJe 28/06/2016).
Neste sentido, é oportuna uma visão mais elástica com melhor análise técnica do seguro de responsabilidade civil, notadamente quando se discute atualmente no Senado da República um instituto que está presente em todos os fatos e atos do dia a dia dos cidadãos como é o caso da Responsabilidade Civil.
Assim sendo, muito cautela se deve ter ao se tratar do instituto do Seguro de Responsabilidade Civil, quando se cuida de albergar em um texto legal a proteção de uma matéria que cada vez mais se faz presente na atualidade securitária.
É o meu entendimento, sob censura.
[1] Comentários ao Código de Processo Civil, Renato Beneduzi, Diretor Luiz Guilherme Marinoni, Revista dos Tribunais, vol II, pág. 199.
[2] Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil, Teresa Arruda Alvim Wambier, Revista dos Tribunais, pág. 414.
[3] Apud, James Eduardo Oliveira, Código Civil Anotado e Comentado, Forense, 2009, pág. 565.
[4] Bruno Miragem/Angélica Carlini, Direito dos Seguros, Revista dos Tribunais, 2014, pág. 37.
[5] Apud, Maurício Salomoni Gravina. Princípios Jurídicos do Contrato de Seguro. Editora Escola Nacional de Seguros, 2015, pág. 84.
[6] item 8 da ementa do Resp nº 1673368/MG, ministro Villas Bôas Cueva, datado de 15.08.2017.
É advogado e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Coordenador da Cátedra de Direto do Seguro e membro da Academia Nacional de Seguros e Previdência – ANSP.
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