Parte quatro

12. Ação direta de terceiro contra o segurador.

Ascarelli, afirma que o problema da posição do terceiro no seguro de responsabilidade civil em geral e em especial o da ação direta do terceiro contra o segurador seria um dos mais graves de quantos se trata nesta matéria.

Segundo Camilo Viterbo, é um problema em torno do qual se escreveu mais na França e Itália nos últimos tempos.

A dúvida perpassa quando se perquire da eventual possibilidade de a vítima prejudicada ingressar diretamente em juízo contra a seguradora que detém uma relação contratual com o autor do ato ilícito.

A doutrina e a jurisprudência brasileiras, assevera Teresa Ancona Lopes de Magalhães, na Enciclopédia Saraiva do Direito, estavam totalmente divididas quanto a esse aspecto. Autores como Aguiar Dias e Wilson Melo da Silva eram totalmente favoráveis a essa ação direta; outros, como Martinho Garcez Neto, Márcio Moacyr Porto e Andrade Figueira, negavam à vítima esse direito.

 Como já se viu, esta matéria está, hoje, superada com o advento do parágrafo único do art. 788 do Código Civil de 2002.

Dessarte, apenas como registro histórico-doutrinário se adiciona abaixo as teses que foram desenvolvidas em relação à possibilidade, ou não, da ação direta de terceiro contra a seguradora do segurado que vitimou ou lesou terceiro prejudicado.

Na doutrina estrangeira, Camilo Viterbo se posicionou, radicalmente, contra a ação direta. Eis algumas de suas razões:

“a) Uma coisa é ter um privilégio sobre um crédito – se é que se pode falar de privilégio neste sentido – e outra é ter o direito de reclamar diretamente o pagamento ao devedor.
b) O seguro de responsabilidade civil não é um seguro a favor de terceiros.

c) É necessário dizer que o direito de pagar o terceiro corresponde para o segurador só dentro dos limites da quantidade máxima.”

É J.G. de Andrade Figueira (RT 139/440) quem afirma que, de uma maneira geral, pode-se dizer ser ela inadmissível. Entre vítima e seguradora, continua ele, não existe qualquer vínculo contratual. Nem se trata de uma estipulação em favor de terceiro, uma vez que o segurado não contrata em benefício da vítima, e sim para resguardar-se das conseqüências civis, patrimoniais, que possa sofrer por ter causado dano a outrem. E arremata: é essa a opinião de Nicola Gasperoni, Mazeaud et Mazeaud, Planiol  e Ripert Godart, Charmentier, Viterbo, Willy Von Eeckout e Ascarelli.

Para Aguiar Dias, a ação direta não pode ser equiparada ao privilégio, porque se trata de institutos distintos. É condição do exercício do privilégio o estado de insolvência ou o concurso de credores sobre os bens do devedor. Ao consagrado jurista a ação direta independe da insolvência, assim como do fato de estarem os bens no patrimônio do devedor.

Mário Moacyr Porto, em sua obra e em artigo publicado na Revista Forense, aduz: “Não há, pelo visto, lei alguma, entre nós, que autorize a ação direta em exame como um procedimento principal e independente em relação à ação do ofendido contra o segurado. Não vinga, por outro lado, o argumento de que o ofendido seria o beneficiado de uma estipulação em favor de terceiro (art. 1.098 do Código Civil de 1916), pois, repete-se, no seguro de responsabilidade o beneficiário da garantia é o próprio segurado”. A matéria encontra-se versado no atual artigo 436 e seguintes do Código Civil de 2002.

Depois de afirmar que não estaria correto o entendimento de tratar-se de uma estipulação a favor de terceiro, Ernesto Tzirulnik, Flávio Cavalcanti e Ayrton Pimentel, arrematam:

“Entretanto, a idéia de estipulação em favor de terceiro é bem próxima à função social do seguro de responsabilidade civil. Emílio Betti, a propósito, adverte que “um negócio jurídico pode, por sua finalidade, (…), produzir também efeitos para pessoas distintas das partes”.

O art. 76 da Lei de Seguro da Espanha, de 08.10.1980, dispõe que o prejudicado ou seus herdeiros terão ação direta contra o segurador para exigir o cumprimento da obrigação de indenizar.

Para Francisco Soto Nieto, jurista espanhol, a ação direta, eliminando a intervenção do autor segurado, permite que a pretensão da vítima busque sua satisfação das mãos mesmas do segurador. No entender deste jurista, é o caminho assinalado por Donati pois o seguro de responsabilidade, como seguro direto do acidente da pessoa ou do dano, é coisa de terceiro, ou seja, um seguro por conta e a favor de terceiro indeterminado. Ela vem desprendida de toda a subordinação de acessoriedade. É o que se passava na França, adverte J. C. Moitinho de Almeida, com a redação do art. 53 da Lei de 1930.

 Hoje, este direito próprio da vítima sobre a importância correspondente à soma segurada é reconhecido pela atual Lei de Seguros francesa, de 07.01.1981, com suas posteriores alterações, no Art. L. 124.3.

Yvonne Lambert-Faivre, adverte que esse dispositivo foi fruto de uma evolução legal e jurisprudencial constante em favor das vítimas, depois do século XIX.

Na Itália, a jurisprudência nega a ação direta, só admitindo a ação do lesado contra o segurador nos termos da ação sub-rogatória, consoante informação do jurista português Moitinho de Almeida. Mas, de qualquer forma, J. G de Andrade Figueira revela a marcha da jurisprudência italiana no sentido da “revolução” assinalada por Josserand em uma de suas conferências, condensadas em Evoluções e atualidades. Conforme se aduziu, o grande jurista italiano Donati vislumbra a possibilidade da ação direta, no direito italiano, quando afirma: “Pois se o terceiro não pode exercitá-la fundando-se em um direito próprio, pode, segundo minha opinião, exercitá-la fundando-se em seu privilégio”.

O Código de Seguros alemão (Versicherungsvertragsgesetz – VVG) prevê a acessoriedade do direito do terceiro frente ao segurador, no contrato de seguro de responsabilidade civil (Allgemeine Haftpflichtversicherung), em seu § 149, verbis:

“[Umfang der Haftung] Bei der Haftpflichtversicherung ist der Versicherer verpflichtet, dem Versicherungsnehmer die Leistung zu ersetzen, die dieser auf Grund seiner Verantwortlichkeit für eine während der Versicherungszeit eintretende Tatsache an einen Dritten zu bewirken hat.”

O renomado mestre argentino Isaac Halperin, intrépido defensor da ação direta da vítima contra o segurador, reiteradamente citado por Aguiar Dias, preleciona: “Mas, em última análise, o que se faz, com a ação direta, é dar pleno cumprimento à vontade das partes. Na verdade, que quis o segurado? Livrar-se de todos os ônus e incômodos decorrentes de sua responsabilidade civil. Quanto ao segurador, o objeto de sua estipulação é satisfazer essas obrigações. Ora, o que faz a ação direta? Proporciona a exoneração objetivada pelo segurador e não prejudica o segurado, porque mais não lhe exige senão o que pagaria, realmente, ao segurado”.

O grande mestre argentino defendia ardorosamente a possibilidade da ação direta, não só em sua obra O contrato de seguro, como também em artigos e debates publicados na Revista de Direito Comercial daquele país. Halperin posicionava-se de pleno acordo com as decisões que concediam aquele procedimento processual, a teor do art. 118 da Lei nº 17.418/67, embora com restrições de seus pares quando criticava o dispositivo legal em tela.

Há, outrossim, opositores ferrenhos à orientação da ação direta no direito argentino. Juan Carlos Félix Morandi, entende que a Lei nº 17.418/67 estruturou o seguro de responsabilidade civil como um contrato em favor do segurado, e não têm cabimento as posições doutrinárias que têm visto naquele diploma um contrato a favor de terceiro, ou um convênio de transmissão de dívidas, cognominado “assunção de dívida”, “delegação” ou “expromissão” (Revista de Direito Comercial, 1970).

Aguiar Dias trouxe a balha o art. 108 do Código Brasileiro do Ar, bem como o art. 1.518 do Código Civil brasileiro de 1916, para sustentar a solidariedade da seguradora e do segurado frente ao terceiro lesado. Essa última regra jurídica foi adotada pela antiga Corte de Apelação do Distrito Federal. Aliás, é citada pelo emérito magistrado Jaime Santos Briz ,do Tribunal Supremo de Madrid, no confronto dos dispositivos legais na legislação comparada. Não se pode olvidar, outrossim, o pioneiro, segundo Aguiar Dias, a enfrentar em nosso Direito a ação direta da vítima contra o segurador, o ilustre jurista Abelardo Barreto do Rosário. Mas, certamente, os ensinamentos de J. G. de Andrade Figueira, estão presentes, quando disse: “A única solução para a questão capaz de satisfazer às necessidades atuais está, entretanto, no seguro obrigatório, adotado em vários países e acenado no Brasil pelo projeto do Código de Transportes. Assim, garantindo-se a vítima, desaparecerá o “intermediário inútil”, na expressão de Jacques Bernays, isto é, “la personne civilement responsable”.

Nesta senda infindável de risco que o progresso tecnológico criou, é tanto mais oportuna a lição do jurista francês Henri de Page, assim expressa na monografia de Wilson Mello da Silva: “Se não se pode negar que a responsabilidade civil automobilística caminha para o seu equacionamento à base exclusiva de risco, constata-se, aqui, ainda, uma solução transacional por via de seguro compulsório, na qual o autor e a vítima de um dano encontrariam, ainda, na indenização forfaitaire o meio-termo harmonizador dos interesses recíprocos: esta, a vítima, garantida em qualquer circunstância por uma indenização em face de um acidente, e aquele, o autor, liberto do perigo de se tornar responsável por um montante, não raro, de valor limitado”.

Porém, jamais o legislador brasileiro deverá esquecer a advertência de Defert, muito bem lançada pelo próprio Wilson Mello da Silva, aposta nos lábios do automobilista, após cada acidente: “Le dommage que j’ai causé sera sûrement réparé”.

Nesse evolver, cabe salientar a conclusão percebida no desencadeamento das opiniões exaradas pelos doutos neste particular. Deste modo, a lição do renomado Andrade Figueira era uma antevisão do que iria acontecer. Hodiernamente, já não se pode mais contestar a admissibilidade da ação direta da vítima, especificamente, como ressaltado à exaustão nos seguros obrigatórios, onde predomina a teoria do risco. É o caso, v.g., dos seguros de danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre (DPVAT – Lei nº 6.194/74), uma vez mais aqui declinado pelo seu grande volume de emissão de bilhetes de seguro, onde a ação direta do terceiro contra a seguradora não constitui novidade alguma.

De tal sorte, a solidariedade na teoria do risco é inquestionável. O segurador responde juntamente com o segurado até o limite obrigatório previsto no bilhete ou apólice de seguro. Aquele em vista de uma estipulação em favor de terceiro, e este em razão do dever de reparar um dano causado a outrem.

Nesse pensar, cabe inteira procedência à tese do magistrado espanhol Luis Roman Puerta Luis, quando afirma que a solidariedade atende, na espécie, à própria vontade negociável dos interessados, à devida ponderação dos interesses implicados e à necessária interpretação lógica, sistemática e finalística das normas legais.

Os seguros obrigatórios, são impostos pelo Poder Público no interesse das vítimas ou prejudicados, cujos valores indenizáveis serão corrigidos, automaticamente.

13. Prescrição no seguro de responsabilidade civil.

Leib Soibelman, afirma que o antigo Código Civil italiano definia a prescrição como sendo o meio pelo qual, com o decurso do tempo, alguém adquiria um direito ou se libertava de uma obrigação. Estão caracterizadas, aí, as duas espécies de prescrição: a aquisitiva e a extintiva. O autor da Enciclopédia do Advogado, arremata: “Parece-nos preferível esta velha definição de um diploma de 1865, que é aceita pela maioria dos autores nacionais, de ser a prescrição a perda da ação atribuída a um direito, porque evita discussões para saber se o que prescreve é o direito ou a ação”.

Os prazos prescricionais, em sede de seguro, estão previstos, atualmente, no artigo 206 do novo Código Civil, notadamente no § 1º, II, letras “a” e “b” e, § 3º, item IX, do Código Civil de 2002.

Vale, ao azo, transcrever o que disse Ricardo Bechara Santos, quando comentando este tema preleciona:

“É mantido o prazo de prescrição de um ano (mesmo para eventos ocorrido fora do Brasil), afastado o de 05 (cinco) anos do Código de Defesa do Consumidor, sendo que no seguro de Responsabilidade Civil esse prazo conta-se da citação do segurado para responder a ação de terceiro ou da data que indeniza com anuência da seguradora (art. 206, § 1º, inciso II)”. (In, Direito de Seguro no Novo Código Civil e Legislação Própria, 2ª ed., Editora Forense, pág. 466/467).

Já no que tange a pretensão do beneficiário contra o segurador, e a do terceiro prejudicado, no caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório, a prescrição se dará no decurso de 03 (três) anos, conforme se verifica do § 3º, inciso IX, do sobredito dispositivo legal do Código Civil.

O enunciado da súmula 229 do STJ é claro, quando diz:

“O pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão”.

Neste particular, já fiz menção ao que disse o eminente civilista Roberto Rosas, ao comentar este enunciado na 13ª edição de sua obra ímpar, “ Direito Sumular, pág. 424, ou seja, “ durante o exame do pedido do segurado (aviso de sinistro), fica suspenso o prazo de prescrição até a conclusão se haverá ou não o pagamento da indenização pedida”.

Impende ressaltar, ainda, as duas súmulas que se acham imbricadas ao tema prescrição em sede de contrato de seguro.

A primeira a súmula 101 do STJ, que cuida da prescrição ânua para que o segurado peça o pagamento da indenização securitária frente ao seu segurador.

Ao azo da abordagem da prescrição ânua o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, em recentíssimo julgamento no recurso especial 810.115, MG, relator ministro Aldir Passarinho Júnior, julgado em 17/6/2010, entendeu que o segurado adquiriu sua condição de aposentadoria em 16/05/2000, preenchendo o aviso de sinistro à seguradora em 10/08/2000, ou seja, 2  meses e 24 dias após o termo da condição (acidente pessoal em razão de doença geradora de incapacidade total e permanente). Em 3 de novembro de 2000 sobreveio a negativa e a ação contra a seguradora foi proposta, somente, em 24/08/2001, perfazendo um ano e 15 dias, situação em que se aplicou a prescrição ânua em sintonia com a súmula acima referenciada. O voto vencido do ministro Raul Araújo Filho, guindado há poucos dias à Corte, foi no sentido de se posicionar contra a soma dos dois meses e 24 dias anteriores, por entender que o interesse para ajuizar a ação só ocorreu após a recusa do pagamento pela seguradora quando então passaria a fluir o prazo prescricional.

A outra, a de número 278, que diz:

“ O termo inicial do prazo prescricional, na ação de indenização, é a data em que o segurado teve ciência inequívoca da incapacidade laboral”, vale dizer, “ O dies a quo surge com o conhecimento da incapacidade”. ( In, Roberto Rosas, ob. cit., pág. 434).

É o que cabia registrar ao azo dos comentários sobre o tema em tela.


Voltaire Giavarina Marensi

 Advogado; professor no DF; Acadêmico da ANSP.