Parte dois…

4. Licitude do seguro de responsabilidade civil.

Uma das grandes preocupações da doutrina era de saber se o seguro de responsabilidade civil encontraria condenação no Código anterior. O novo diz: “Nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário ou do representante de um ou de outro (art. 762, Código Civil de 2002)”.

O emérito Clóvis Beviláqua entendia que não era necessário que o próprio objeto fosse ilícito, bastaria apenas o risco tomado. Aguiar Dias ressalva que nem ele nem Carvalho Santos tiveram em vista o seguro de responsabilidade. Daí não haverem esclarecido o problema que agora enfrentamos: os atos ilícitos cujas consequências não podem ser seguradas, por disposição que aplica ao seguro o princípio geral do art. 166, II, do novo Código Civil, abrangem o ato ilícito definido no art. 186 do mesmo Código?

Registre-se que, no passado, houve entendimento no sentido de encarar o seguro de responsabilidade civil como atentatório da ordem pública e da moral. Havia, certamente, confusão entre a culpa em sentido estrito e as consequências advindas desta.

O seguro da responsabilidade civil, porém, vai acobertar os danos ocasionados a terceiros sempre que houver culpa stricto sensu do segurado. O dolo, excepcionalmente, também tem cobertura quando o ilícito é perpetrado por terceiro não segurado, dando azo à sub-rogação por parte da seguradora até quando aquele ato doloso tenha sido causado pelo cônjuge do segurado, seus descendentes ou ascendentes, consangüíneos ou afins, tudo como se dessume da leitura do §1º, do art. 786 do atual Código Civil.

A culpa em sentido estrito, na definição de Enrico Altavilla, origina o dano derivado de uma conduta ilícita, contrária às normas genéricas da vida civil, que se poderá chamar de “culpa aquiliana”. Aliás, esse preceito acha-se anexo no caput do art. 186 do nosso novo Código Civil, verbis:

“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

A redação do dispositivo legal precitado provém do art. 1.382 do Código Napoleônico, que, na opinião dos doutos, coloca como básica a exigência expressa da caracterização de uma violação injusta ou ilícita de quem o pratica, tal como o fez o direito alemão.
Sílvio Rodrigues observa de modo diverso, quando diz: “Seria preferível que o preceito não usasse a expressão ‘violar direito’, e seguisse, desse modo, mais de perto, a regra do art. 1.382 do Código Civil francês, onde o legislador brasileiro certamente se inspirou”.
A responsabilidade que se pode segurar – diz mestre Pontes de Miranda – “é a do ato culposo (não doloso) da pessoa segurada, ou a de fato, ou de ato-fato de outrem, culposo ou doloso, ou de animal. Somente não é segurável responsabilidade do segurado por fato oriundo de dolo”. Hoje, atendendo expressamente a dicção do atual artigo 762 do nosso Código Civil.

A responsabilidade derivada de multas impostas ao segurado, bem como as despesas de qualquer natureza, relativas a ações ou processos criminais, são riscos excluídos, conforme se depreende das Condições Gerais deste seguro. Nesse diapasão se inclina o direito francês, embora os autores que comentam a matéria não vislumbrem obstáculo à inclusão, nas apólices de seguro, de uma cláusula de defesa do segurado na esfera penal.

Mazeaud et Tunc dizem “que se assegurar não é tão-só prever a própria culpa e descarregar-se dela por antecipação, mas prever ao mesmo tempo a sua insolvência e garantir-se frente a ela e aos eventuais credores”. Essa modalidade de seguro tem um domínio muito importante – a cobertura das responsabilidades nascidas das diversas atividades humanas, sobretudo profissionais. Por isso, afirma Mazeaud, “o seguro de responsabilidade, ato de prudente previsão, não choca com a ordem pública”.

Merece um lugar à parte a menção de que os países desenvolvidos já estão dando cobertura aos seguros nucleares (inclusive o Brasil), bem como contra os riscos da poluição de qualquer espécie em sede de seguro ambiental, que não é objeto destes comentários.

5. Caracterização do seguro de responsabilidade civil.

Henoch D. Aguiar, citado por Aguiar Dias, recorda que dá lugar ao nascimento da obrigação do segurador não a ocorrência de um fato fortuito ou de força maior, mas a superveniência de acontecimento incerto, previsível, e, por isso mesmo, evitável, o que não importa afirmar que o caso fortuito ou de força maior (imprevisível e, se possível, inevitável) não possa constituir a fonte da obrigação do segurador, ex vi legis, artigo 393 do Código Civil atual.

É Pedro Alvim quem adverte: “No seguro, p. ex., de responsabilidade civil o segurado fica à mercê da vítima ou de seus beneficiários; enquanto estes não reclamam os danos, nada poderá fazer aquele para pleitear o pagamento do segurador”.

A situação acima caracterizada não encontra casuísmos nos seguros de vida, vez que, incerta quanto à data, é certa com o decurso do tempo, constituindo-se um fato jurídico a morte do próprio segurado.

6. Seguro de responsabilidade com objeto determinado e com objeto
indeterminado.

O seguro de responsabilidade civil garante o patrimônio do segurado. Assim, para Picard et Besson “o seguro de responsabilidade civil é um seguro contra danos, e não de uma dívida”. O dano causado no patrimônio do terceiro afeta diretamente o do autor, que, na hipótese da não-existência de seguro, terá de pagar uma soma com base em ato ilícito perpetrado por ele ou seus dependentes.

Segundo a classificação dos seguros privados apresentada por Pedro Alvim, em sua monografia “O contrato de seguro”, a responsabilidade civil faz parte integrante dos seguros de danos, os quais, conforme Mazeaud, dividem-se, também, segundo seu objeto em: a) determinados e b) indeterminados. Picard e Besson elucidam a questão dizendo “que o próprio seguro de responsabilidade civil pode ter o objeto determinado. Aventam “a cobertura do detentor, no caso, segurado, em razão da coisa que estiver em sua posse e que deveria ser restituída ao seu proprietário, vindo, oportunamente, a se perder ou deteriorar. Exemplificam com o locatário, o destinatário e o transportador”.

Mas, aqueles tratadistas reconhecem dizendo: “Os mais importantes dos seguros de responsabilidade civil são os objetos indeterminados, porque não se tem apreciação, visto que não se conhecem as pessoas ou os bens aos quais o segurado causará eventualmente um dano e, conseqüentemente, torna-se impossível avaliar o montante exato da responsabilidade passiva”. Ilustram com a responsabilidade do vizinho em caso de incêndio, a do motorista e os seguros de responsabilidade profissional.”

7. Cláusulas permitidas e cláusulas proibidas.

A cláusula de não reconhecer responsabilidade tem, segundo Pontes de Miranda, de ser considerada em duas espécies: a) cláusula de não reconhecer fora de juízo; b) cláusula de não reconhecer em juízo, aliás, hoje, expressamente prevista no § 2º do art. 787 do Código Civil de 2002.

A primeira, em resumo, seria o seguinte: ninguém tem o dever de dizer a verdade. Alega-se que tal cláusula atentaria com a moral e a ordem pública. Ao segurador caberá o ônus de provar que tal reconhecimento importou em seu prejuízo.

Quanto à cláusula de não reconhecer em juízo, entende o saudoso jurisperito “que a ninguém é lícito proibir à pessoa não dizer a verdade perante a Justiça, principalmente, quando, agora, há expressa disposição legal”.

Este problema (o de não-reconhecimento de culpabilidade) suscita alguma controvérsia na legislação alienígena. O antigo art. 52 da Lei de 1930, do Código de Seguros francês, alterado com o advento da Lei nº 81-5, de 07.01.1981, no art. L. 124.2, estabelece: “O segurador pode estipular que nenhum reconhecimento de responsabilidade, nenhuma transação, em que não tenha intervido, lhe serão oponíveis”.

Neste diapasão colhe-se excertos do Code des Assurances, nos comentários a esse dispositivo legal, notadamente no item 3, sob o título “Sanction Légale.” L’ inobservation par l ‘assuré de la clause prohibant la reconnaissance de responsabilité entraîne l’ inopposabilité à l’ assureur de cette reconnaissance. En effet, selon la Cour de cassation “Une telle reconnaissance ne peut produire aucun effet à l’ encontre de l’assureur” si elle a été contractuellemente prohibée (Cass. 1 re civ., 12 mars 2002, n°98-22.434: Juris-Data n°2002-013484; Bull. Civ. 2002, I, n°83).

(Code des Assurances, Commenté sous la Direction de Bernard Beignier et Jean-Michel do Carmo Silva, LexisNexis, Litec, 2008, Deuxiéme Édition, pág 197).

Na opinião dos autores franceses Picard et Besson e Yvonne Lambert-Faivre, essa cláusula não deve ser interpretada equivocadamente, ou seja, o reconhecimento da materialidade de um fato não pode ser encarado como reconhecimento da responsabilidade. Assim não entendem Mazeaud et Tunc, afirmando que reconhecer os fatos materiais é, às vezes, reconhecer necessariamente a própria responsabilidade. Porém, em um ponto todos são uníssonos, quando afirmam que essa cláusula não poderá referir-se a atos de humanidade, como o fato de levar a vítima a uma farmácia ou a um hospital e entregar a ela certa soma para os primeiros cuidados, ou informar-se sobre o seu estado. São os conhecidos atos de caridade, que remontam às raízes do cristianismo.

No direito italiano, Donati assevera a não-existência de uma proibição expressa, desde que seja facultada ao segurador a possibilidade de averiguar o andamento da lide.

8. Crítica ao atual sistema.

Vias de regra, todas as modalidades concernentes ao Seguro de Responsabilidade Civil, acentuam que nos riscos cobertos “esta cobertura garante até o limite máximo de garantia contratada, o reembolso ao segurado das quantias pelas quais vier a ser responsável civilmente em sentença judicial transitada em julgado ou em acordo autorizado de modo expresso pela seguradora, relativas a reparações por danos involuntários, corporais ou materiais causados a terceiros ocorridos durante a vigência da apólice decorrente de acidentes…” Com referência ao aspecto do reembolso houve manifestação de Viterbo, asseverando:

“Frente ao texto das apólices que usam a expressão de “reembolso” ou a de “pagamento”, não há mais que um remédio: interpretar estas expressões não com respeito a seu significado literal, senão tendo em vista o que acontece, porque não poderia ser de outro modo a intenção das partes”. Nesse sentido, estribado em Ascarelli em nota de rodapé, acrescenta: “O termo ‘reembolso’, usado pelo segurador na apólice, não exclui que haja dano ressarcível e obrigação do segurador de pagar a indenização antes de que o segurado tenha pago”.

As Condições Gerais desse seguro – ora objeto de apreciação -, não guarda, na verdade, uma perfeita sintonia com o vigente Código Civil italiano, que, em seu art. 1.917, alínea 2ª, estabelece a outorga de faculdade ao segurador, mediante prévia comunicação ao segurado, de pagar diretamente ao terceiro prejudicado as indenizações devidas, estando obrigado ao pagamento direto se o segurado requerer.

Não se pode, preleciona Elcir Castello Branco, no direito brasileiro, afirmar a existência de regra jurídica que permita ao segurador pagar diretamente, ou ao terceiro pedir tal pagamento, como prevê o Código Civil italiano no artigo supramencionado. Porém, na prática, esse item, em parte, já constitui letra morta, vale dizer, uma vez que o segurado se declare culpado à seguradora, em processo administrativo. Com a posterior constatação desta assertiva pela companhia caberá a ela (seguradora) efetivar, de imediato, a indenização diretamente ao terceiro prejudicado (vide item anterior).

Na esfera judicial a sistemática é distinta. Pontes de Miranda, tecendo comentários a este respeito, declara que “a cláusula vedativa de transação com o terceiro é permitida (hoje, admitida com anuência expressa do segurador, como se viu alhures), porque de certo modo retiraria ao segurador o seu direito de entrar na lide e poder o contraente transigir com o terceiro a respeito da liquidação da sua dívida”. De modo nenhum, obtempera o saudoso mestre, “se pode argumentar, como faz Vittorio Salandra, com a afirmação de que se trataria de disposição de coisa alheia”.

“Tratando-se de uma inovação da lei processual civil, discorre Pedro Alvim, os comentaristas não se entenderam sobre seu alcance”. A verdade é que os nossos magistrados deferem a denunciação da lide, com fulcro no nº III do art. 70 do CPC. Essa, no entanto, não era a opinião do saudoso Celso Agrícola Barbi, em seus Comentários ao Código de Processo Civil (1ª ed.), verbis: “Ora, no caso do seguro, a seguradora não cedeu ou transferiu qualquer direito ao denunciante. Apenas se obrigou a indenizá-lo, em caso de ser ele constrangido a pagar prejuízo a outrem. Não existe, portanto, o direito de garantir que, normalmente, justifica a denúncia da lide; por esses motivos, entendemos que a norma do nº III não se aplica ao segurado que for acionado, pela vítima, para pagamento de quantias por dano que causou. Não é ele obrigado a denunciar a lide à companhia onde se segurou para a hipótese de ocorrer aquele pagamento”.

Todavia, a denunciação à lide deverá decidir somente a relação jurídica existente entre as partes contratantes. Se o julgador prolatar sentença que envolva, diretamente, o terceiro com o segurador, exacerbando o valor estabelecido na apólice de seguro em detrimento do segurado penso ser cabível a ação rescisória, com fundamento no art. 485, V, do CPC.

Do mesmo modo, a meu sentir, a expressão “involuntariamente”, consignada nas Condições Gerais da apólice de seguro, verbia e gratia, em sede de responsabilidade civil – Guarda de veículos de Terceiros, é desnecessária. Assim entendo, pois, a garantia do pagamento de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiros é coberta até mesmo em virtude de atos dolosos que os dependentes ou prepostos do segurado venham a ocasionar, significando, em última análise, na opinião de Aguiar Dias, o dolo ou culpa do próprio segurado. Hoje, aliás, como se disse em atenção à redação do § 1º do artigo 786 do atual Código Civil.

Neste tópico, por derradeiro, cabe salientar que, quanto à cláusula de não revelar o seguro, as legislações dos diversos países estão perfeitamente sintonizadas no sentido de que se trata de matéria superada. Para Donati essa cláusula desapareceu com o advento do Código Civil italiano. Viterbo a considerou inadmissível.

Quanto à transmissão de documentos, o tema é também pacífico no direito alienígena, inclusive com prazo de entrega prefixado. No direito francês é de cinco dias, orientação seguida pelas companhias seguradoras brasileiras.


Voltaire Giavarina Marensi

 Advogado; professor no DF; Acadêmico da ANSP.