Ao transportador marítimo de carga imputa-se a responsabilidade objetiva pelos anos decorrentes de sua atividade.  A causa-eficiente dessa imputação é dupla: 1) manejo de fonte de risco e 2) obrigação contratual de resultado.

Preferimos a primeira, sem sombra de dúvida, até por conta do hodierno Direito de Danos. A segunda, porém, é a mais comumente lembrada e é dela que primeiro trataremos neste ensaio.

Descumprida a obrigação de transporte, que é de resultado, presume-se a responsabilidade do transportador, independentemente da apuração de sua culpa.

Muito apropriado o comentário de Sérgio Cavalieri Filho[1]:

Informam a responsabilidade do transportador de mercadorias (ou de cargas) os mesmos princípios gerais do contrato de transporte de pessoas. Também aqui a obrigação do transportador é de fim, de resultado, e não apenas de meio. Ele tem que entregar a mercadoria, em seu destino, no estado em que a recebeu. Se a recebeu em perfeito estado, e assim deverá entregá-la. Inicia-se a responsabilidade do transportador com o recebimento da mercadoria e termina com a sua entrega. Durante a viagem, responde pelo que acontecer com a mercadoria, inclusive pelo fortuito interno. Só afastarão a sua responsabilidade o fortuito externo (já que, aqui, não tem sentido o fato exclusivo da vítima) e o fato exclusivo de terceiro, normalmente doloso.

Agostinho Alvim,[2] também afirma a obrigação de resultado como principal característica do contrato de transporte:

Realmente, a obrigação do transportador é de fim e não de meio. Não se obriga ele a tomar providências e cautelas necessárias para o bom sucesso do transporte; obriga-se pelo fim, isto é, garante o bom êxito. Daí a apreciação rigorosa da sua 2 responsabilidade.

A obrigação do transportador é a de conduzir a carga seguramente ao destino. Se, ao término da viagem, houver algum dano, é evidente que o não cumprimento fiel do seu dever e a presunção legal de responsabilidade.

Daí a conclusão de que a responsabilidade do transportador começa quando recebe a carga e só se expira depois que a entrega, sendo que as faltas ou avarias correm por sua conta, salvo se provenientes de vício próprio, força maior ou caso fortuito, competindo-lhe a prova de tanto.[3]

Exatamente o que Luís Felipe Galante[4] afirma:

O transportador marítimo é responsável pelas avarias ou extravios de mercadorias confiadas ao seu transporte de forma objetiva, isto é independentemente de culpa. Em outras palavras, ocorrendo problemas com a carga embarcada, ele está a priori obrigado a ressarcir o dono das mercadorias dos prejuízos sofridos, tenha agido ou não com culpa no episódio. Essa obrigação decorre da sua condição de depositário da carga a bordo, pois todo o depositário, como guardião que é da coisa alheia, está obrigado a restituir a coisa depositada tal como ela lhe foi entregue.

Novamente o magistério de Sérgio Cavalieri Filho5, desta vez orientado ao transportador marítimo de carga:

A responsabilidade do navio ou embarcação transportadora (art. 3º) começa com o recebimento da mercadoria a bordo e cessa com sua entrega à entidade portuária, ou trapiche municipal, no porto de destino, ao costado do navio. Se a operação de embarque é feita com aparelhos da embarcação, consideram-se como efetivamente entregues as mercadorias a partir do momento em que são colocadas ao costado do navio e inicia-se a operação […].

E como o transportador marítimo de carga é o alvo de nossa atenção neste ensaio, reportamo-los ao querido mestre Rubens Walter Machado (a quem saudamos in memoriam):[5]

Ao transportador, incumbindo-se de transportar mercadorias, cumpre entregá-las ao destinatário no lugar convencionado e no estado e quantidade em que as recebeu, de conformidade com o     exposto no art. 519 do Código Comercial: O capitão é considerado verdadeiro depositário da carga e de quaisquer efeitos que receber a bordo, e como tal está obrigado a sua guarda, bom acondicionamento e conservação, e à sua pronta entrega à vista dos conhecimentos. […]

[…] A responsabilidade do capitão a respeito da carga principia a correr desde o momento em que a recebe e continua até o ato da sua entrega no lugar que se houver convencionado, ou que estiver em uso no porto de descarga. […] Não o fazendo, cumpre-lhe, também, o ônus da prova para elidir a sua responsabilidade pelo inadimplemento do contrato firmado. […] Sua responsabilidade é, portanto, sempre presumida, amparada pela teoria da culpa sem prova, que tem seu nascedouro na infração das regras pré-estabelecidas da obrigação em si, tal qual dispõe o art. 1.056 do Código Civil, responsabilidade essa que se origina não da culpa aquiliana, mas, sim, do contrato firmado. […] É presumida a culpa do transportador por motivos óbvios de lógica jurídica, e sua caracterização – tal qual um depositário – predomina nas obrigações de guardar, conservar e restituir.

Não temos dúvida alguma de que o transportador é devedor de obrigação de resultado e responde objetivamente por danos nas cargas confiadas para transporte. Dessa presunção de responsabilidade só se afastará se provar (teoria da carga dinâmica da prova) vício de origem (ou de embalagem), força maior ou caso fortuito.

Embora seja o entendimento de sempre, muito aproveita reafirmá-lo a todo instante, a fim de que esses conceitos não sejam de modo algum esgarçados.

A inventividade dos advogados no exercício do Direito não é pouca e muitas vezes fazem com que o incogitável torne-se cogitável.

Daí a necessidade de se afirmar o que é certo e que deveria ser indubitável.

Nunca nos cansamos de lembrar o grande escritor inglês, GK Chesterton  que nos disse que chegaria o dia em que teríamos que afirmar que a grama é verde.

Nos litígios judiciais sobre temas de Direito Marítimo, Direito dos Transportes e Direito dos Seguros esse dia chega a cada momento, infelizmente.

Nosso zelo, portanto, não é excessivo, muito menos escrupuloso. É, antes, movido pela necessidade profissional e pelo pudor acadêmico.

Hoje, fala-se muito, e com razão, em sociedade de riscos e imputação objetiva aos causadores de danos em geral, de tal modo que não se pode admitir qualquer diminuição do que já conquistado.

Fala-se, mais, em responsabilidade objetiva por manejo de fonte de risco, o que reforça sobremodo o que aqui se defende contundentemente.

Desde longa data que se tem como certa a responsabilidade objetiva do transportador de carga, devedor que é de obrigação de resultado e a inversão do ônus da prova.

Por isso, nenhum recuo é admissível. O que foi até aqui conquistado há de ser mantido e ampliado.

Com efeito, o que se discute é o fortalecimento dessa imputação objetiva e o maior rigor no reconhecimento de eventual causa legal de exclusão de responsabilidade, observando-se criteriosamente os novos paradigmas e o domínio do estado da técnica.

Nada além, nada aquém.

O transporte de cargas é uma das atividades que mais evoluiu com o passar do tempo, de tal modo que os riscos inerentes ao seu exercício são muitas vezes menores do que no passado.

Paradoxalmente, os riscos de danos aos outros, muito maiores.

Os transportadores gozam cada vez de mais segurança e precisão, porém são potenciais fontes de danos às gentes e ao meio-ambiente.

Nisso, nossa atenção quanto ao fortalecimento contínuo da responsabilização objetiva e do seu efeito mais imediato, a inversão do ônus da prova.

Basicamente, traduzimos essa atenção do seguinte modo: ao interessado, vítima do dano, dono da carga (ou seu segurador, devidamente sub-rogado) não há de se exigir outra coisa senão a demonstração do nexo de causalidade e do prejuízo. Ao transportador, danador, porém, imposição de prova cabal de sua inocência no episódio.

Diante de dúvida, a natureza objetiva da responsabilidade bastará para impor ao transportador o dever de reparação civil integral, porque certo de que não se desincumbiu do ônus de provar alguma causa legal de exclusão.

Infelizmente e em não poucos litígios, ainda que a Justiça reconheça a responsabilidade objetiva, exige-se da exige da vítima do dano (ou de quem as vezes lhe fizer) a prova da culpa do transportador ou se tem a dúvida como algo a lhe aproveitar.

Isso não é correto e fere os princípios da responsabilidade civil objetiva e da teoria da carga dinâmica da prova, beneficiando indevidamente o causador de dano.

Carregamos de ênfase a afirmação porque além da conhecida assunção de obrigação de resultado, o transportador de cargas também responde objetiva e integralmente pelo manejo de fonte de risco.

Aquele que exerce atividade de risco de dano aos outros tem por presumida a responsabilidade, sendo irrelevante a apuração de sua culpa. Essa é a medida da nova régua da responsabilidade civil em muitos países, incluindo o Brasil.

Aqui, a responsabilidade objetiva por atividade de risco encontra-se tipificada no parágrafo único do art. 927 do Código Civil[6] e é regra legal importantíssima, principiológica e orientadora de outras, dada a interpretação sistêmica do Direito.

Trata-se, em primeira e última instâncias, da chamada teoria do risco, que em si mesma contém – como corolário – a responsabilidade objetiva de quem a abraça em suas atividades.

Ao se reportar ao art. 927, Raimundo Simão de Melo[7]:“Trata-se de importante novidade no ordenamento jurídico brasileiro, adotando expressamente a teoria do risco como fundamento da responsabilidade objetiva, paralelamente à teoria subjetivista da culpa.”

E prossegue o ilustre procurador a dizer algo que muito aproveita a este ensaio, embora em contexto distinto ao do Direito dos Transportes:

“De acordo com o ministro Lélio Bentes Corrêa, a expressão “riscos da atividade econômica” deve ser compreendida de forma ampla. Assim, “não estão englobados apenas os riscos econômicos propriamente ditos, como o insucesso empresarial ou as dificuldades financeiras, mas também o risco que a atividade representa para a sociedade e, principalmente, para seus empregados”. O ministro ressaltou que o princípio da responsabilidade objetiva, quando se trata de dano ligado à integridade física do trabalhador, “se justifica plenamente”.

Aplicando a responsabilidade objetiva no referido caso, o ministro Vieira de Mello construiu uma analogia com o Código de Defesa do Consumidor (CDC), em que a responsabilidade objetiva é atribuída à empresa no caso de um produto que oferece risco ao consumidor pela sua elaboração, confecção e utilização. Ele argumentou que se o consumidor compra o pneu, o pneu fura e provoca um acidente, a empresa vai responder objetivamente. No entanto, se o empregado trabalha nessa linha de produção, fazendo o teste desses produtos, correndo o risco de um dano físico, pela teoria da responsabilidade subjetiva teria de provar a culpa da empresa. “Seria um contrassenso exigir a prova da culpa da empresa quando se trata do trabalho humano e, ao contrário, não haver essa exigência quando se trata do risco pela simples utilização do produto”, afirmou.

Quanto à segunda questão — o que é atividade de risco —, cabe observar que estamos diante de um conceito aberto e não de uma regulamentação expressa sobre o que seja 6 atividade de risco. A tarefa de enquadrar cada caso concreto como atividade de risco é da jurisprudência, com o auxílio da doutrina, aplicando a legislação existente.”

 A teoria do risco avoluma-se com o Direito de Danos e conecta-se intimamente ao Direito de Transportes. Trata-se de regra fundamental porque não se limita aos deveres do contrato de transporte e da natureza finalística da obrigação assumida pelo transportador e bem afirmada no início deste ensaio.

Não! Vai muito além disso. Toda vítima de dano causado por navio pode, independentemente de legislações especiais, argumentar em seu favor a imputação objetiva e a inversão do ônus da prova.

Nessa condição forte estão as vítimas de danos não contratuais e o segurador sub-rogado na pretensão original do dono da carga, seu segurado.

O segurador sub-rogado não é parte no contrato de transporte, razão pela qual não se submete aos seus termos e condições. A ele são ineficazes todas as cláusulas contratuais, já que se direito não deriva do inadimplemento da obrigação de transporte e, sim, do pagamento de indenização ao seu segurado, vítima original do dano.

Para que não se ponha (ainda que indevidamente) em dúvida o dever de o transportador responder objetivamente pela inexecução de obrigação de resultado mesmo quando o litigante do ressarcimento for segurador sub-rogado, tem-se no art. 927 do Código Civil e moldura ideal para a pintura da imputação objetiva.

O segurador sub-rogado, como qualquer vítima do dano, exercerá seu direito contra o transportador com a mesma e principiológica estampa jurídica da imputação objetiva, apenas o fazendo por meio de outra regra legal.

O cuidado com o assunto é importante porque a responsabilidade civil objetiva do transportador é marco civilizacional, algo fundamental para a boa simetria das relações negociais e fundamental para o desenvolvimento econômico saudável, sustentável.

Diante do avanço tecnológico exponencial e da teoria do risco não se pode mais falar em suscetibilidade dos transportadores ao meio. Alguns riscos ainda existem, é verdade, mas são poucos e devem ser sempre analisados conforme os novos paradigmas.

No caso específico do transportador marítimo é inverossímil que ainda se diga da viagem uma aventura.

Já se foi e há muito o tempo da aventura marítima. Hoje, a navegação não é imune a toda sorte de riscos, porém é cada vez mais segura, precisa e controlada. Raros são os casos realmente fortuitos, sobretudo quando confrontados pelas lentes dos novos paradigmas.

Ao transportador marítimo, como aos transportadores em geral, impõe-se o dever geral de cautela[8], que, entre outras coisas que razoavelmente dele se pode esperar, exige a atenção aos protocolos de segurança da navegação.

Esse dever geral de cautela é intimamente ligado à cláusula geral de incolumidade e reforça a imputação objetiva por danos nas cargas e a obrigação de provar, em sendo o caso, mediante rigorosa inversão de ônus, causa legal de exclusão.

E o que se entende, afinal, por dever geral de cautela?

A resposta parece óbvia: o dever de o transportador proceder com rigor e atenção na condução da coisa, evitando danos e garantindo sua integridade.

Pode-se ainda dizer que se trata do exercício eficaz da arte de transporte, que nada mais é do que o respeito absoluto às técnicas da Lex Artis.

E o que é a Lex Artis?

Respondemos como sendo o conjunto de normas, atos, decisões e procedimentos consagrados em um dado momento para a boa e diligente prática profissional ou empresarial. Enfim, aquilo que é necessário para o desempenho correto de uma arte ou ofício. A lei, portanto, exige esse desempenho eficaz e implicitamente abraça o conceito de Lex Artis.

Assim, o transportador não só tem que evitar o dano, como se vincula ao exercício prudente de sua obrigação principal: conduzir íntegra a coisa confiada.

O mínimo desvio de qualquer cautela é o bastante para imputar ao transportador a responsabilidade por ofender a integridade da coisa.

Isso também se infere das ideias de devedor de obrigação de resultado e manejador de fonte de risco.

O transportador tem que se guiar pela boa técnica, não ser de modo algum negligente ou imprudente, tampouco agravar minimamente os riscos inerentes ao seu ofício.

Tendo-se em conta a presunção legal de responsabilidade por danos à coisa transportada, a carga dinâmica da prova compete ao transportador, de tal maneira que é ele quem, em um episódio danoso, tem o dever de demonstrar que respeitou a Lex Artis, que tomou todas as cautelas necessárias.

Mesmo assim, essa prova só lhe aproveitará em um caso concreto se bastante para provar a ocorrência de alguma causa legal excludente de responsabilidade (caso fortuito, força maior ou vício de origem ou de embalagem).

Se a demonstração não conduzir a isso, pouco importará a questão da carga dinâmica da prova ou os efetivos cuidados com o dever geral de cautela, até porque os assim considerados “fortuitos internos”, ou seja, os acontecimentos inerentes ao ato de transportar, não são capazes de afastar a responsabilidade.

Tudo isso sempre fez parte dos cenários do Direito dos Transportes e do Direito Marítimo, é verdade, mas nunca ficou sem constante ataque por parte dos transportadores, que insistiam e insistem em trazer aos litígios envolvendo suas responsabilidades o tema culpa.

Culpa, repetimos, que só pode ser eventualmente abordada quando do enfrentamento das alegações de causas excludentes de responsabilidade, com a inversão de ônus da prova. No mais, ela é, nunca cansaremos de dizer, absolutamente prescindível.

E nossa convicção é ainda maior agora. Sem ignorarmos a imputação objetiva por descumprimento de obrigação de resultado, temos como fonte principal da responsabilidade, sobretudo quando o interessado for segurador sub-rogado, o manejo de atividade de risco, fonte potencial e enorme de danos.

Vamos além: essa convicção é reforçada, vitaminada, avolumada, texturizada, pela Escola de Salamanca e a forma como hoje encaramos a responsabilidade civil.

 O que há de novo em termos de responsabilidade civil?

Podemos dizer que a novidade é a revitalização de antigos conceitos e a centralidade da vítima do dano quanto à eficaz e integral reparação e, mais, o direito fundamental que cada um tem de não ser danado. Em sociedades de riscos como as que vivemos e em um tempo de socialização desses mesmos riscos e dos danos, essas revitalização e centralidade são fundamentais.

Muitas situações que antes eram reguladas pelos critérios da responsabilidade subjetiva agora o são pelos da objetiva e as que antes, como a dos transportadores de cargas, eram pela objetiva agora são em muitas outras e elevadas doses, considerando-se mais vividamente os novos paradigmas.

A novidade, se assim se pode chamá-la, reside na mudança de mentalidade em relação ao eixo fundamental da responsabilidade civil. Antes, e por muito tempo, a culpa; agora, a imputação objetiva. E na esteira dessa mudança, outra, tão ou mais importante: o grande protagonista, em vez do danador, passou a ser o danado.

A vítima do dano passou a ser o alvo das atenções, situação que conferiu vigor renovado a temas subjacentes da responsabilidade civil, tais como a incidência da teoria 9 objetiva e a quantificação dos danos. Essa mudança liga-se à nova posição dos riscos e danos no mundo atual.

A sociedade contemporânea é, precisamente, esta sociedade de riscos, em que, a qualquer instante, surgem vítimas de danos graves, capazes de se estender no tempo e no espaço, como nos lembram os exemplos do navio Prestige e da usina nuclear de Chernobyl.[9] Por isso o Direito, que não poderia deixar de evoluir, veio oferecer respostas mais eficazes à moderna dinâmica de problemas, e daí se chegou, ao fim e ao cabo, à primazia da imputação e da vítima (do danado).

O esquema geral da responsabilidade civil, atualmente, bem mais do que o de antes, contemplou com destaque a justificação do dever de indenização e o elemento de configuração do direito da vítima. A apuração da culpa perdeu fôlego, e com isso a teoria objetiva ganhou poder, mesmo em hipóteses não alcançadas pelos contratos e/ou pelas obrigações de resultado.

Hoje, importa mais saber quem causou o dano, e lhe imputar a devida responsabilidade pelos prejuízos derivados, do que apurar se sua conduta foi ou não culposa e, caso tenha sido, qual o grau de culpa.

Disso não se extrai que a culpa, sua apuração e intensidade, tenha deixado de existir ou, posta de lado, se tenha encolhido em irrelevância. Não; o fato é que, em um volume indesprezível de situações, o dever de reparação (integral) dos prejuízos acaba por se impor com objetividade incontornável.

Responsabilizar alguém sem culpa faz parte da dinâmica do tempo atual, medida valiosa quando calibrada por princípios como os da razoabilidade, proporcionalidade, boa-fé, equidade, entre outros.

Essa mudança de mentalidade se projetou no tempo a partir dos anos 90 do século passado, quando o Direito Civil foi se socializando.

Aqui cabe um parêntese imprescindível: socialização não possui aqui nenhum cunho político-ideológico nem vinculação a socialismos de qualquer tipo. Trata-se, apenas, de algo voltado ao bem comum, ao cenário social. Por exemplo: interessa a todo o tecido social que transportadores adotem rigorosos protocolos de segurança para o bom exercício de suas atividades e respondam rápida e integralmente pelos prejuízos dos danos que causarem, não se escondendo em cláusulas contratuais abusivas ou em regras legais que não podem ser invocadas sem cuidadosa contextualizações fáticas.

Então por volta desta época os pilares da responsabilidade civil por culpa, um tanto fatigados, esbaforidos pelo uso milenar, começaram a ruir; e ruindo vêm até os dias atuais.

 Vivemos hoje em uma sociedade repleta de atividades potencialmente lesivas. Sendo assim, nada mais natural que o Direito busque abordagens de controle mais arrojadas. A de transporte sempre assim foi rotulada, sem de forma alguma se esvaziar sua exuberante importância. Essa natureza lesiva, porém, em muito se ampliou e o rigor no trato de responsabilidade civil do transportador de carga, especialmente o marítimo, não pode deixar de acompanhar essa ampliação.

Além disso, sendo o mundo cada vez mais influenciado pela Quarta Revolução Industrial e pela Inteligência Artificial, parece pueril querer dar ares de eternidade aos moldes já enferrujados da  responsabilidade civil, com fundamento único ou preponderante na bem idosa visão de culpa. Daí o salto em favor da seguinte ideia: quem causa o dano, arca com o prejuízo, pouco importando a culpa ou a falta dela.

Mais do que nunca temos presente a máxima de que aquele se beneficia diretamente de uma fonte de risco, manuseia algo potencialmente capaz de causar dano, tem de arcar com o ônus decorrente disso.

Eis, pois, um novo e poderoso princípio do Direito, o pro damnato.

A leitura das páginas da responsabilidade civil passa a ser feita com as lentes da proteção da vítima. Não se pergunta mais, ou tanto, sobre culpa, mas como melhor proteger a vítima. E disso vem o triunfo da responsabilidade objetiva.

Esse contexto todo – sociedade de riscos, Direito de Danos, destaque à imputação e princípio do pro damnato – tem consequências imediatas não só no trato da responsabilidade civil, mas no âmbito social como um todo e, mais particularmente, na Economia e no Direito do Seguro.

Não são poucas as vozes que reclamam seguro obrigatório para diversas atividades empresariais. Esse conjunto de vozes, nada roucas, não deseja maior mitigação do princípio da autonomia da vontade, e sim a presença cada mais frequente do negócio de seguro.

A presença do negócio de seguro auxilia muito na imputação objetiva da responsabilidade civil, reservados e bem defendidos, pois, todos os elementos arquétipos e informadores do próprio negócio, sob pena de sua indevida e violenta socialização vir em ofensa manifesta ao princípio do mutualismo e ao colégio dos segurados.

Por isso é que advogamos no caso específico do transportador marítimo a responsabilidade solidária, ainda que pela regra da obrigação in solidum, do seu P&I Club (o Clube de Proteção e Indenização), que é espécie de segurador de responsabilidade civil, tese que começa a ganhar contornos de entendimento judicial. O tema é complexo e dele não trataremos aqui. Cabe apenas o breve comentário e a importância de se buscar essa vinculação para que a dinâmica atual da responsabilidade civil em nada seja prejudicada.

Feito o parêntesis necessário, voltemos ao tema-coração deste texto: a responsabilidade civil. Ela segue a mesma linha, com alterações apenas no esquema geral. Com efeito, objetivar tanto quanto possível a responsabilidade civil passou a ser a grande busca do Direito contemporâneo, o vital mecanismo de calibragem da sociedade de riscos e danos.

Diante dessa busca, por demais importante é repetir, em destaque, que o danador, o responsável, o lesador, não o é necessariamente por conduta em si reprovável, mas pelo próprio manuseio de fonte de risco.

Não obstante, quase todos os Códigos do mundo ainda se pautam pelo antigo conceito de culpa, ao menos como regra geral. Daí a importância de contínuas mudanças legislativas e jurisprudenciais.

Hoje um número imenso de litígios de responsabilidade civil se funda na responsabilidade objetiva. No passado, desde o Digesto, praticamente a única imputação objetiva de responsabilidade existente era a dos proprietários de bens semoventes. Muito tempo depois, no século XIX, veio a responsabilidade dos empregadores por acidentes de trabalho.

A responsabilidade objetiva por acidentes de trabalho, aliás, motivou, na Espanha, o surgimento dos mútuos patronais, isto é, a repartição do problema, observando-se, de forma embrionária, o binômio “responsabilidade objetiva e proteção securitária”. E o que se passou na Espanha se deu em praticamente todo o mundo ocidental.

A obrigação de transporte, essencialmente de resultado e de risco, também se submeteu aos ditames da responsabilidade objetiva no início do século passado, e hoje o que se discute é se, com os avanços tecnológicos que a cada dia mais intervêm na atividade, pode a visão das causas excludentes de responsabilidade continuar a mesma de antes. Do ponto de vista prático, uma das maiores evidências dessa mudança vigorosa de mentalidade é o surgimento do princípio da carga dinâmica da prova, a inversão do ônus probatório.

O desafio mais recente não é pensar sobre tais ideias, mas como pensá-las. Por isso a menção anterior aos princípios fundamentais, constitucionais ou não, que não podem deixar de informar a nova leitura da responsabilidade civil e o correto ânimo de sua objetivação e os afirmados e reafirmados paradigmas.

Sabe-se que do transportador se exige o dever geral de cautela, de que trata o art. 749 do Código Civil. Esse dever é cada vez maior em face da atual forma de se encarar a responsabilidade civil e a tecnologia empregada na atividade. E a depender na espécie de carga, a potencialização é geométrica, exigindo-se ainda mais cuidados, ou, como dizem os alemães, Die Sorgfaltspflicht über die Sorgfaltspflicht, que é espécie de princípio-vetor dos atos e procedimentos de quem assume deveres objetivos de guarda e tem o chamado poder de controle de atividades (como tem todo transportador): o cuidado além do próprio dever de cuidado ou, ainda, o cuidado sobre o cuidado.

Nesse sentido muito bem fez o legislador Civil brasileiro, que além de disciplinar o dever de reparação civil integral no art. 944 do Código Civil não se olvidou de prever para a atividade de risco o manto da responsabilidade objetiva, conforme o art. 927. Particularmente feliz foi o Código Civil, e bem consentâneo ao pensamento internacional, que leva em conta a responsabilidade civil na sociedade de riscos e danos.

A expectativa mais positiva é que a cada dia o que a lei já prevê ganhe mais corpo nos cenários doutrinário e jurisprudencial, especialmente nas relações com outros ramos do Direito, como o dos Transportes, a fim de rever e melhor pensar as cláusulas legais excludentes de responsabilidade, bem como as que ousam oferecer, em ofensa ao plano moral, as limitações indenizatórias.

Todos os transportadores exercem atividade de risco, manejam fonte de risco. E quando falo em riscos, não falo apenas às pessoas e cargas transportadas, mas à sociedade em geral; às pessoas não transportadas, ao meio-ambiente, aos bens alheios.

Alguns dos maiores sinistros ambientais da história foram protagonizados por transportadores de cargas, especialmente os marítimos.

Caminhões, aviões e navios são grandes fontes de riscos e atores potenciais de danos. Por isso regulamentações preventivas são imprescindíveis, assim como regimes rigorosos de responsabilidade civil.

Quando se tem o transportador por titular de atividade de risco, tem-se a possibilidade de imputação objetiva de responsabilidade, e tudo o que ela implica, notadamente a inversão do ônus da prova. Não só as partes contratantes podem demandar contra o transportador com base da responsabilidade objetiva, mas todas as suas vítimas podem fazê-lo.

Já não se fala no polêmico uso da legislação consumerista e o conceito de vítima do fato do produto ou de serviço, já que esta exige o que a doutrina especializada chama de relação de consumo objetiva. Fala-se em regra de natureza civil, geral, que põe no centro de tudo a figura do lesado.

A aparente generalidade do texto legal (atividade de risco) é positiva e visa à apuração do caso concreto e suas circunstâncias. A calibragem é dada pelo princípio do pro damnato. Com efeito, o objetivo do legislador foi o de proteger a vítima do dano, e isso tem que ser sempre levado em máxima consideração.

Não é preciso ser especialista em logística e em transportes para se enxergar nestes a presença umbilical da ideia de atividade de risco. A regra legal, portanto, soluciona problemas formais e busca a substancialidade protetiva tão necessária para que o direito a não ser lesado se avolume no tecido social.

O parágrafo único do art. 927 do Código Civil é especialmente relevante ao segurador sub-rogado na pretensão original do dono da carga. Como não é parte do contrato de transporte e como não se submete a qualquer norma de Direito de Transportes, ele se vale do conceito de manejo de fonte de risco para correta e equitativamente se beneficiar da imputação objetiva de responsabilidade ao transportador, autor de dano.

Desde o momento em que o Direito passou a considerar mais importante a figura da vítima do dano do que a do seu causador, a prevalência da reparação civil integral tornou-se ainda mais forte, inafastável.

Sendo certo que a responsabilidade civil do transportador por danos contratuais e extracontratuais é sempre objetiva (exercício de atividade de risco) e que no caso de danos às cargas confiadas para transporte somente a prova (observada a inversão da carga dinâmica) de causa legal excludente de responsabilidade é capaz de afastar a presunção legal, interessa-nos tratar daquilo que pode eventualmente romper o nexo de causalidade e a forma de tratamento em relação ao tempo atual.

E aquilo que pode romper o nexo de causalidade e – eventualmente, cada vez mais eventualmente, aliás – afastar a imputação de responsabilidade é algo que se analisa tripartidamente, as causas legais excludentes.

  • Vício de origem (vício de embalagem);
  • Caso fortuito;
  • Força maior;

Essas causas apresentam-se em rol taxativo, digamos desde logo.

É bem verdade que o vício de origem encontra pares, como o vício de embalagem e o vício redibitório, mas estes são apenas desdobramentos de um mesmo ato-fato jurídico.

Em uma lide forense, a causa legal excludente de responsabilidade tem que ser cabalmente provada pela parte interessada, no caso, o transportador marítimo.

Aplica-se a teoria da carga dinâmica da prova. Há inversão de ônus. O transportador é quem tem que provar a causa legal excludente da sua presunção legal de responsabilidade por dano decorrente da atividade.

Essa inversão de ônus tem que ser levada muito a sério e aplicada com rigor, sob pena de se desnaturar a responsabilidade objetiva.

Infelizmente, a Law in Action nem sempre repete o que determina e ensina a Law in Books. Não raro, fala-se ainda em necessidade de a vítima do dano de transporte provar a culpa do transportador, ignorando-se as normas e os princípios da responsabilidade objetiva.

Isso é desrespeito à ortodoxia, pois ao interessado, vítima do dano ou segurador sub-rogado, compete apenas demonstrar o dano (prejuízo) e o nexo de causalidade, nada além, nada aquém.

O nexo de causalidade e o dano induzem, por si mesmos, em se tratando de 14 transporte marítimo, a presunção de responsabilidade do transportador.

Único ônus efetivo de provar fatos e atos cabe apenas ao transportador, que tem que demonstrar a ocorrência efetiva de alguma das causas de exclusão alegada em seu favor.

A mera alegação não basta para o rompimento do nexo de causalidade e o eventual afastamento da presunção legal de responsabilidade.

Daí a importância de se bem aplicar a inversão da carga dinâmica da prova e de se obrigar o transportador a demonstrar por meios verazes a efetiva ocorrência de causa legal de exclusão.

E a prova há de ser devidamente valorada de acordo com as particularidades do caso concreto. Nem toda adversidade climática é fortuidade como nem todo aparente vício de origem é, mesmo, um vício de origem.

Faz-se necessário considerar muitos fatores e circunstâncias, que vão da previsibilidade ao domínio do estado da técnica e da possibilidade ou não, por exemplo, de se recusar a coisa por causa de sua embalagem quando do recebimento para transporte.

Por isso que considerando os assuntos, causas legais excludentes de responsabilidade, e inversão do ônus das provas, dois dos mais interessantes do Direito Marítimo em exercício.

Passaremos, agora, a tratar dessas causas de exclusão mais detalhadamente.

A saber:

O vício de origem abraça outros: vício de embalagem, culpa exclusiva da vítima e vício redibitório.

Vício de origem é o existente na própria coisa confiada para transporte.

Em outras palavras, é o vício ou defeito oculto já existente quando da entrega da coisa para o transporte marítimo, que impede sua utilização e gera desvalorização, quando não perda total.

Ora, se os danos constatados nos bens confiados para transporte marítimo preexistiam ao próprio transporte, não há que se falar em responsabilidade do transportador.

Mesmo em se considerando a responsabilidade objetiva, é manifestamente injusto obrigar o transportador a responder por danos aos quais nem minimamente deu causa.

Trata-se, pois, de uma causa excludente de responsabilidade que bem se ajusta aos muitos mecanismos de calibragem do sistema jurídico brasileiro e, mesmo, internacional.

A prova da existência do vício de origem compete exclusivamente ao transportador marítimo, por conta e ordem do império da teoria da carga dinâmica da prova, inversão de ônus, um dos pilares da teoria objetiva imprópria.

Assim, em sendo alegado pelo transportador eventual ocorrência de vício de 15 origem, caberá a ele próprio a respectiva produção de prova, normalmente por meio de perícia judicial.

Não havendo prova específica em tal sentido, mantém-se, em desfavor do transportador, a presunção de responsabilidade.

O vício de embalagem é mais comumente alegado nas lides forenses envolvendo transportes marítimos de cargas.

Os arquétipos do vício de embalagem são os mesmos do vício de origem.

Trata-se do defeito existente na proteção da carga e não se limita ao que a envolve, alcançando também a unitização.

Todo transporte, especialmente o marítimo, é sujeito a oscilações diversas.

Um navio, numa viagem normal entre a Europa e a América do Sul balança lateralmente centenas de milhares de vezes.

Logo, a embalagem da carga é medida de rigor e imprescindível para sua integridade física e qualitativa.

Se a embalagem não for adequada, poderá o transportador marítimo afastar a presunção legal de responsabilidade por eventuais avarias, competindo-lhe, nunca é demais repetir, o ônus disso provar, fazendo-o de forma técnica e cabal.

Mas, nesse caso, a inversão do ônus da prova, além de igualmente imprescindível, é mais complexa de ser considerada. Falamos isso porque o vício da embalagem não poderá ser visível a olho nu ou apurado por meio de procedimentos práticos ou máximas de experiência.

O art. 746 do Código Civil expressamente prevê que “o transportador poderá recusar a coisa cuja embalagem seja inadequada, bem como possa pôr em risco a saúde das pessoas ou danificar o veículo e outros bens”.

Em sendo conferida, por lei, a possibilidade de o transportador recusar a coisa cuja embalagem seja inadequada, muito difícil a eventual caracterização de vício de embalagem.

De fato, ao receber a carga, o transportador automaticamente reconhece que a embalagem é adequada, pois se assim não fosse, poderia ter exercitada a faculdade disposta no citado art. 746 do Código Civil.

Logo, para se ter caracterizada a figura do vício de embalagem é preciso provar, ainda, que o vício e o defeito dessa mesma embalagem eram manifestamente ocultos no momento do embarque.

E ao se falar em “oculto”, fala-se oculto aos olhos e as máximas de experiência, ao bom-senso e conhecimento da tripulação do navio, que sabe, a rigor, quais embalagens são ou não adequadas para a maioria das cargas que lhe são confiadas por meio de sucessivos transportes.

Importante destacar que vício de embalagem jamais poderá ser confundido com vício de estivagem da carga.

O vício de estivagem, apesar do nome, não tem a nada a ver com o vício oculto. Trata-se, sim, de grave modalidade de falta contratual do transportador marítimo, que se revela desidioso quanto aos seus deveres operacionais.

Com efeito, a estivagem, ainda que operada por terceiro, é de inteira responsabilidade do transportador, por meio do comandante do navio.

O vício de estivagem nada mais é do que a falha operacional do transportador marítimo em arrumar as cargas a bordo do navio.

Se o transportador não estivou corretamente um contêiner a bordo do navio e, em razão disso, o sinistro ocorreu, caracterizada sua culpa, não se cogita a respeito de qualquer outra causa significativa para o acontecimento.

Da mesma forma, o tempo adverso não é motivo, por si só, para a ocorrência de um sinistro, pois a despeito da intensidade deste, o que de fato ocorre é a estivagem inadequada da carga.

Sabendo-se de antemão que o transporte marítimo envolve riscos e que tempestades e condições adversas de navegabilidade são relativamente comuns, não poderá o transportador alegá-los em todo e qualquer caso de avarias.

A experiência nos autoriza afirmar quem em muitas situações, os danos não são provocados pelas circunstâncias intensas da navegação, mas por estivagens absolutamente inadequadas. O mau tempo não é causa primaz do sinistro e, sim, no máximo, concausa.

O mau tempo é, muitas vezes, apenas o gatilho do circunstância factual, o elemento que revela a ineficácia constrangedora da estivagem.

Para que o mau tempo seja verdadeiramente causa de exclusão de responsabilidade é necessário, antes, verificar a previsibilidade, a inevitabilidade e a irresistibilidade, bem como o domínio do estado da técnica e tudo o mais que faz da navegação marítimo algo bem diferente do que era no passado.

Cada vez mais, portanto, a alegação de fortuidade se esfumaça e torna-se difícil de ser emplacada até porque nela também reside a imperiosidade de se provar e bem a ocorrência, cabendo o dever ao transportador, quem dos seus efeitos jurídicos pretende se beneficiar.

Força maior e caso fortuito são as causas excludentes de responsabilidade mais comumente alegadas pelos transportadores marítimos e as que são objeto das grandes discussões em lides forenses, até porque sua caracterização, hoje em dia, é difícil de ser verdadeiramente constatada.

Fala-se em dificuldade porque a navegação atual definitivamente não é a mesma do passado, imediato ou remoto.

Entendemos que não faz mais sentido se falar em aventura marítima e que as palavras do poeta de que “navegar é preciso, viver não é preciso” têm ainda mais sentido do que quando escritas.

A navegação é atualmente precisa como quase sempre foi e segura como nunca antes na história.  Os autores espanhóis, Rosa Romero e Alfons Esteve[10], tratando da “la tecnologia del buque”, afirmam:

“(…) La navegación alcanzó unos niveles de velocidad y seguridad sin paragón hasta entonces.

En la actualidad, las embarcaciones son más rápidas y pueden ofrecer mayor exactitud en el cumplimiento de las fechas de llegada y salida a un determinado puerto; además, ya no dependen de la energía eólica, hecho que representa la supeditación absoluta a las condiciones meteorológicas. (…) La propulsión motorizada supuso una mejora considerable en la navegación, aunque también generó nuevos riesgos relacionados con la seguridad marítima, los accidentes y la contaminación ambiental.

Las consecuencias de estos cambios tecnológicos y los avances en las telecomunicaciones han producido un eco en el comercio y en la dinámica del transporte marítimo.

(…)

En su lugar, la rapidez y eficacia marcan el ritmo del transporte marítimo (…)

Definitivamente os tempos são outros e a tecnologia empregada em todos os campos do transporte marítimo, da engenharia naval às informações climáticas e de navegabilidade, permite afirmação segura de que não se pode mais falar em fortuidade como se falava antes e de que é necessário investigar muito os fatos de um determinado caso concreto para se lhe dar o título e o que dele juridicamente deriva.

Não ignoramos que o transporte marítimo ainda é circundado e informado por riscos, como bem destacam os autores de Barcelona [“No obstante, el transporte marítimo conlleva una serie de riesgos que se debem, básicamente, a la naturaleza del medio em que realiza su actividad, el mar”], todavia não ignoramos que esses riscos são conhecidos, administráveis e cada vez menores. Por outro lado, os próprios navios são fontes de riscos, de potenciais danos pessoais, sociais, ambientais e materiais.

Força maior e caso fortuito, realidades contemporânea à parte, fazem parte do gênero fortuidade, sendo diferentes quanto à fonte de incidência. Enquanto na força maior o agente causador é a conduta humana, no caso fortuito, o agente é a força da natureza.

É importante destacar que esse entendimento não é pacífico na doutrina mundial.

O Direito comparado apresenta a doutrina alemã em sentido contrário. Para os alemães, o conceito de força maior implica força da natureza e o de caso fortuito, a conduta humana.

No Brasil, muitos doutrinadores seguem o modelo alemão. Por isso, temos no Brasil uma situação particular em termos de conceitos e definições.

Em termos estritamente maritimistas, costuma-se utilizar a expressão força maior como decorrente da conduta humana e caso fortuito como o evento nascido da natureza; já nos do Direito Civil, temos o contrário: força maior, para eventos da natureza e, caso fortuito, para eventos originários do homem.

Há quem considere caso fortuito e força maior expressões sinônimas, sem distinção de qualquer natureza, uma vez que o que é relevante ao ordenamento jurídico é a projeção dos efeitos legais e concretos de um e de outro e que são praticamente os mesmos.

Em que pese o antagonismo conceitual existente, é certo que os efeitos são efetivamente os mesmos e as consequências jurídicas, também.

Operando-se o gênero fortuidade, é possível compreender melhor os institutos e postulados que regem as espécies, força maior e caso fortuito.

E ao falarmos da fortuidade, especialmente naquilo que se relaciona ao meio natural, falamos – como adiantamos no início – da importância de bem se observar os novos paradigmas.

O evento que no passado tipificava fortuidade, hoje dela passa distante e impõe ao transportador o dever de reparação integral por danos e prejuízos.

A caracterização da fortuidade depende dos seguintes elementos, tidos como pressupostos essenciais: imprevisibilidade, inesperabilidade[11] e irresistibilidade.

Esses três elementos são concorrentes, de tal sorte que precisam estar presentes, a um só tempo, dentro de um cenário fático, para se cogitar ocorrência de fortuidade. A ausência de qualquer um deles fere de morte a invocação de fortuidade, sempre levando em consideração que quem a invoca tem o ônus de prová-la.

Não basta, portanto, a ocorrência de um fato considerado anormal e provocador de um determinado dano para se validar a alegação de fortuidade. Faz-se imprescindível que este fato seja absolutamente imprevisível, inesperado e irresistível.

É o que afirma o prestigiado e ilustre Pedro Calmon Filho13:

Por caso fortuito, ou força maior, que muitos consideram expressões sinônimas, temos os fatos imprevisíveis ou irresistíveis, que vencem a normal diligência e perícia que se pode razoavelmente esperar do armador e seus prepostos. São os fatos inesperados que ultrapassam a capacidade do homem de prevenir contra um perigo não normalmente esperado, ou lhe fazer face depois de deflagrado.

Fortuidade, dentro dos transportes de cargas, é o evento, verdadeiramente imprevisível, inesperado e irresistível (inevitável) originário das forças da natureza ou da conduta humana que impede o aperfeiçoamento da obrigação e gera danos às cargas.

É ato-fato (fenomênico e jurídico) que não depende da vontade do transportador, superando-a em todos os seus limites. É devastador happening, um fenômeno invencível e que reverbera nos planos econômico-financeiro e jurídico.

Insistimos, porém, na imprescindibilidade da concomitância dos elementos constitutivos e da análise conceitual conforme circunstâncias fáticas como o domínio do estado da técnica, o dever geral de cautela, a observância dos protocolos de segurança etc.

Logo, não será qualquer greve de trabalhadores portuários capaz de configurar a fortuidade nem a simples ocorrência de uma tempestade, ainda que muito forte, igualmente capaz.

Greves de trabalhadores em portos e adversidades climáticas, ainda que intensas, são acontecimentos previsíveis e que integram o risco do negócio de transportes. São, no máximo, fortuitos internos, incapazes de gerar ao transportador rompimento do nexo de causalidade de sua responsabilidade relativamente às mercadorias confiadas para transporte.

Não é ocioso repetir que a fortuidade reclama existência efetiva, bem caracterizada, demonstrada e comprovada, concorrente, dos elementos constitutivos: imprevisibilidade, inesperabilidade (inevitabilidade) e irresistibilidade. E, mais, esses elementos segundo a dinâmica dos fatos e os novos paradigmas do caso fortuito e da força maior.

Há inegável empirismo no trato da fortuidade e poderosa necessidade de se cuidar de cada caso conforme suas particularidades. Ao assunto em exercício não cabem modelos fechados.

Veja-se o comentário abalizado de Marco Fábio Morsello[12]:

 “De fato (…), considerando a cosmologia, a climatologia e seus aspectos religiosos correlatos, observou-se, em caráter universal, a atribuição dos eventos extraordinários aos desígnios dos deuses, denominados propriamente vis divina.

Com o desenvolvimento da sociedade, os mecanismos de prevenção desafiaram referidas circunstâncias, porquanto prever não é predizer, fomentando-se o desenvolvimento racional do conhecimento por cálculo do risco, efetivo catalizador do desenvolvimento da Humanidade.

No entanto, seja por intermédio da visão de constelações estelares a olho nu, por parte do Homo sapiens, seja na Antiguidade, na Idade Média, na Moderna ou Contemporânea, há uma realidade unívoca inafastável: a força maior promana de constatação empírica.

(…) impõe-se a elaboração jurídica da figura, na medida em que atinge os negócios 20 jurídicos contratuais, rompe o nexo causal e configura excludente do dever de indenizar na seara da responsabilidade civil. (…)

Patente, pois, a necessidade de funcionalização da excludente, sendo inconcebível uma concepção apriorística de força maior, já que a mera abstração, dando gênese a um raciocínio a contrário sensu, sem análise in concreto, poderá ensejar erronias de monta, sobretudo à luz da intrincada complexidade que promana da causalidade múltipla.

Deveras, a qualidade de força maior não se encontra vinculada ao evento. Ao revés, nenhum fato se encontra previamente excluído da referida categoria, sendo, portanto, o mais correto admitir que a força maior, em verdade, é uma circunstância de fato revestida de uma qualificação jurídica. Desse modo, as qualificações caso fortuito ou força maior são tão somente etiquetas sobre as quais se afigura necessário inscrever: sem garantia e objeto de verificação, como preconiza ANTONMATTEI, com acuidade. 

(…)

Nessa senda, como é cediço, emergem inúmeros desafios, à luz da evolução do estado da técnica, designadamente com espeque na causalidade múltipla e na teoria da causa desconhecida. Impõe-se a reanalise de alguns critérios, com as respectivas considerações propositivas, nomeadamente considerando que há uma revolução noética na era do conhecimento e a aplicação da cláusula geral do risco da atividade, com fulcro nos novos riscos. Já ressaltamos a frase de MARC HALÉVY: “o tempo, no tempo, mudou com o tempo”, o que impõe a análise da figura sob novos paradigmas”.

Absolutamente felizes os comentários de Morsello, eis que nenhum sinistro marítimo pode, de antemão, ser rotulado de fortuito, ainda que aparentemente inserido em contexto fático que, no passado, autorizaria a tanto.

Tudo, com o perdão da insistência, dependerá efetivamente do que se observar no caso concreto, levando-se em conta suas já comentadas particularidades.

Há nisso boa lógica jurídica, temperança e a aplicação inteligente, idônea, de princípios fundamentais como os da razoabilidade e da proporcionalidade.

Ninguém é obrigado a cumprir o impossível; da mesma forma, a ninguém é dado o descumprimento do que é possível sob a aparência de impossível.

Morsello lembrou bem Halévy [o tempo, no tempo, mudou com o tempo] e lembramos que é preceito bíblico de que a cada dia, o seu mal.

Em transporte marítimo, o mal de ontem certamente não é o de hoje e o que antes causava angústia é, agora, letra morta. Evidentemente que não desconsideramos que ainda há riscos e que existem fenômenos verdadeiramente submetidos ao metro da régua da fortuidade, porém estamos seguros de que nem tudo, para não dizer quase nada, que se alega derivado de fortuidade realmente o é.

Bisamos com especial entusiasmo o que citamos mais acima: “(…) a qualidade de força maior não se encontra vinculada ao evento. Ao revés, nenhum fato se encontra previamente excluído da referida categoria, sendo, portanto, o mais correto admitir que a força maior, em verdade, é uma circunstância de fato revestida de uma qualificação jurídica. (…)”.

Só se falará em fortuidade se o transportador marítimo conseguir provar a ocorrência de um fenômeno, ao mesmo tempo, imprevisível, inevitável e irresistível e que se insira nos novos paradigmas do domínio do estado da técnica.

A falta de qualquer um dos elementos constitutivos e/ou não subsunção aos paradigmas são causas-eficientes mais do que bastantes para se ter afastada qualquer pretensão de reconhecimento de fortuidade.

No Direito Marítimo atual não há mais espaço para a ideia, para lá de ultrapassada, “aventura marítima”. O transporte marítimo ainda é envolto em riscos, porém nada que se compare aos tempos das grandes navegações, de Vasco, Saldanha, Cabral, Fernão, Elcano e Cook.

Atualmente, os navios não são mais vítimas da natureza, mas seus possíveis e potenciais algozes.

Falar-se em aventura marítima é desprestigiar, sabe-se lá por quais interesses, talvez inconfessáveis, a grandeza e a magnitude dos avanços tecnológicos.

Sobre o tema fortuidade em relação à navegação nos dias de hoje, Rubens Walter Machado,[13] afirmou:

[…] a força maior ou o caso fortuito previstos por nossa legislação comercial, são os fatos imprevisíveis ou irresistíveis que superam a normal diligência e perícia que se podem exigir do comando do navio. São os fatos inesperados que extrapolam a capacidade do homem prevenir-se contra um perigo não esperado, ou de enfrentar depois de iniciado. Em nossos dias, com o avanço da tecnologia, os navios são planejados e construídos para enfrentar os usuais perigos do mar.

Os meios de comunicação existentes permitem que o comando do navio tenha uma exata e perfeita informação das condições do mar a ser enfrentado, permitindo que se afastem – quase que por completo – os fatos imprevisíveis, imprevistos e inesperados.

A lição do querido e eterno mestre expõe o repúdio à ideia malsã de a expedição marítima ser, em pleno século final XXI, uma aventura, como alegam os transportadores marítimos. Aliás, a própria expressão “expedição marítima” não mais se ajusta à dinâmica contemporânea do transporte de cargas. O correto é dizer viagem marítimo, nada além, nada aquém.

Existem inúmeras razões e motivos para repudiar a ideia da aventura. É fato notório que o constante avanço da tecnologia impulsionou enorme desenvolvimento da engenharia naval. Nos dias de hoje, os navios são planejados e construídos para suportarem as adversidades[14] próprias do mar. São, aliás, construídos para superarem os mares mais furiosos e tempestuosos. Não é só: com a explosão da informática, a ciência meteorológica foi premiada com poderosos recursos e fantásticos equipamentos. Os modernos meios de comunicação existentes permitem que o comando do navio, por meio dos poderosos radares e computadores de bordo, diretamente ligados a satélites de última geração, tenha exata, ampla e segura informação, a qualquer tempo, das condições de navegabilidade.

Logo, bem se trabalhando o conceito de fortuidade, é muito difícil, para não dizer impossível, haver, nos dias atuais, um caso concreto em que um navio, no curso de uma viagem, venha a ser colhido por um fato, ao mesmo tempo, inesperado, imprevisível e irresistível, bem como à margem dos novos paradigmas.

Os fatos do mundo inspiram o Direito.

E, inspirando o Direito, os fatos, a cada dia, reclamam melhores soluções para os problemas que gravitam em torno deles. Com efeito, é a norma jurídica que deve se ajustar aos fatos e não o contrário. E a interpretação ainda mais. Logo, é coerente imaginar que, se o mundo dos fatos altera-se com velocidade assustadora, no mesmo ritmo e inteligência deve comportar-se o Direito, composto pelos chamados sistemas de interação. Tais sistemas devem incorporar a essência dos fatos que pretendem regular. Daí, serem revestidos de lógica e legitimidade.

É verdade, afinal ninguém pode negar aquilo que facilmente se observa e amplamente se constata no mundo dos fatos. As relações comerciais, hoje globalizadas, alcançaram um rápido desenvolvimento, sedimentando-se em um estágio antes inimaginável, no qual o número de transações havidas por dia é assustadoramente volumoso e os valores envolvidos, elevadíssimos.

Não é exagero dizer que noventa por cento, senão mais, do transporte internacional de mercadorias é feito por via marítima. Todos os dias, de todos os importantes portos do mundo, centenas de navios zarpam ou atracam, no maior intercâmbio comercial da história.

Os riscos agora em foco não são aqueles que se abatem sobre a navegação e, sim, os dos danos que os navios podem causar. Diante dessa nova situação é que se pugna mais rigorosas respostas do Direito.

É a realidade fático-social conclamando o Direito a responder necessidades urgente. A aplicação das normas exige outra interpretação e nela considerados os riscos da atividade maritimista e os tão comentados e repetidos novos paradigmas. Nisso, muito vale conclamar a magnífica Teoria Tridimensional do Direito do sempre querido e festejado eternamente professor Miguel Reale.

Ainda que as normas sobre a responsabilidade civil do transportador marítimo sejam as mesmas, os fatos não mais são os de antes, de tal forma que os valores hão de ser outros. Por isso, independentemente de mudanças legislativas, o maior rigor pode de pronto ser aplicado. Em havendo o dano de transporte nada mais será necessário realmente demonstrar senão o nexo de causalidade. Ele bastará, como sempre bastou, para a imposição do dever de reparação civil integral.

Isso quer dizer que não há prova alguma a ser produzida pela vítima senão da do prejuízo e, primeiro, do nexo de causalidade. Aliás, meras evidências são suficientes. Ao transportador – e somente a ele – caberá qualquer tipo de prova. Exigir a demonstração de conduta culposa do transportador por parte do legítimo interessado é desnaturar o peso da responsabilidade objetiva e tudo o que dela emana relativamente aos riscos e potenciais de danos dos navios de cargas.

Tão relevante quadro, aliado a tudo aquilo que já foi mencionado a respeito da elevada tecnologia com a qual os navios são construídos e os aparatos eletrônicos e computadorizados que auxiliam nos trabalhos de navegação e investigação climática, são indicadores excelentes para, no diapasão da evolução do próprio Direito, autorizarem um entendimento mais rigoroso acerca dos institutos, preceitos e comandos que operam o tema responsabilidade civil do transportador.

Com efeito, é razoável imaginar que a correta teoria a ser empregada para o tema destacado é do manejo de fonte de risco, sedimentada na responsabilidade civil objetiva própria. A teoria e o tipo responsabilidade que dela emana exigem atenção constante ao domínio do estado da técnica, a evolução das coisas e as mudanças dos tempos.

O danador, manejador de fonte de risco, sempre responderá pelos prejuízos, não lhe sendo, salvo em casos absolutamente extraordinários, excepcionalíssimos, o rompimento do nexo de causalidade. Ele responde pelo risco que gera ao se movimentar empresarialmente e responde de forma integral, quase absoluta. O não responder dependerá de prova que se lhe impõe e essa prova jamais renunciará ao momento e ao que particularmente se houver por bem considerar.

Bom repetir, ainda que em outras palavras: tratando-se de responsabilidade civil objetiva própria, contratual ou extracontratual, nada poderá exonerar ou atenuar o dever de reparação civil integral daquele que a tem contra si.

Não há que se falar em incidência das chamadas excludentes legais de responsabilidade, salvo em situações absolutamente distintas e que possam gerar incontroverso e constrangedor senso de gravíssima injustiça.

A responsabilidade civil objetiva pura funda-se no pressuposto de que nada poderá elidir a presunção legal do danador. Seu objetivo é, acima de tudo, proteger a vítima do dano. Depois, impor ao causador a justa reparação. E, mais ainda, acreditar no desenvolvimento contínuo de mecanismos de prevenção. Em que pese nossa certeza de que a maior, senão única, ocupação da responsabilidade civil seja a reparar a vítima.

Realmente, ainda que os requisitos da imprevisibilidade, inesperabilidade e irresistibilidade estejam presentes num sinistro, o transportador marítimo responderá mesmo assim pelos prejuízos, pois a ninguém colhido pelo infortúnio é dado estender a sua infelicidade a outrem, sobretudo quando este outrem havia lhe pago para o perfeito cumprimento de obrigação líquida e certa, estampada pelo efetivo resultado.

Se o transportador marítimo for vítima de um violentíssimo furacão, totalmente inesperado, sequer passível de previsibilidade, ou se, atracado em um porto qualquer, for colhido uma abrupta comoção social, entendemos serem riscos de sua atividade e de mais ninguém, sobretudo em relação aos proprietários das cargas nele estivadas. O transportador recebeu para isso e tem que suportar os ônus daquilo que lhe gera bônus. O que ora defendemos vai além dos novos paradigmas da fortuidade. Muito além, aliás. A despeito deles, suficientemente hábeis diante dos contextos contemporâneos, queremos a plena imputação de responsabilidade dos transportadores.

Uma vez que recebeu o frete e iniciada a sua obrigação contratual, o transportador marítimo abraça o conceito do risco. O risco, bom frisar, é intrínseco aos seus exercícios regulares e justamente por isso que ele, o transportador, cobra um frete tão elevado. No cálculo do frete estão os custos e os riscos. Não é razoável, portanto, que ele venha a se valer, às avessas, desse mesmo risco para, fundado em alguma causa legal excludente de responsabilidade, eventualmente exonerar-se da obrigação de reparar o dano que, por nexo de causalidade, lhe é imputado.

Os deveres do transportador marítimo, já dissemos muitas vezes, são os mesmas do depositário: guardar, conservar e restituir. Deveres que derivam de outro, o geral de cautela. Deixando de os cumprir, sobrevém a responsabilidade por danos e prejuízos. Essa responsabilidade, embora presumida, pode ser eventualmente afastada.

Hoje o que se tem como válido é a apuração da causa e a valoração dos novos paradigmas do caso fortuito e da força maior como critérios para o rompimento ou não do nexo de causalidade e a obrigação ou não de reparação civil. Tudo dependerá na detida análise de cada caso concreto.

O que desejamos para o futuro, ainda que mediato? Que nem mesmo os causas legais excludentes, ainda que tratadas sob o guarda-chuva dos novos paradigmas, exonerem o transportador do dever de reparação civil integral. O rompimento do nexo, então, dar-se-á como a exceção das exceções, a extraordinariedade por excelência. A imputação plena de responsabilidade ocorrerá independentemente da causa fenomênica que motivou a danação das mercadorias confiadas para transporte.

De fato, no século passado e até as três primeiras décadas deste século, havia algum sentido falar-se em fortuidade, ou seja: matéria de defesa e de exclusão de responsabilidade do transportador marítimo. Hoje, pleno Século XXI, é um despropósito enorme e sem qualquer fundamentação fática. Há, contudo, suporte jurídico e é este suporte que se pretende ora contrariar.

Praticamente, a única excludente legal de responsabilidade que se pode admitir, quando muito e salvo casos inegavelmente extraordinários, é a do vício de origem, uma vez que, dentro da sumária digressão histórica feita a equiparado, por assim dizer, à culpa exclusiva da vítima. Claro, se o próprio interessado, dono das mercadorias e dos bens, entregou-os com defeitos, eivados em vícios, não há que se falar na eventual responsabilização do transportador.

Observa-se, porém, que a caracterização do vício de origem, equiparado à culpa exclusiva da vítima, é ato de natureza subjetiva, o que significa a exigência de prova e, como se sabe, prova a ser produzida pela métrica da teoria da sua carga dinâmica, mediante inversão de ônus. Observa-se, ainda, que ao vício de origem se acrescenta o de embalagem, com o cuidado da verificação do exercício legal da recusa e a não confusão com o erro de estiva.

Daí ser perfeitamente argumentável a defesa da tese de que os transportadores marítimos hão de responder sempre objetivamente e da forma mais pura e absoluta possível por danos e prejuízos derivados de acidentes ou incidentes.

Importante será a manifestação dos melhores doutrinadores e estudiosos brasileiros a respeito do tema nos próximos anos e igualmente importante será a Jurisprudência, orientando-se gradativa e majoritariamente nesse sentido, de tal sorte que, num futuro não muito distante, os legisladores brasileiros venham a se sentir suficientemente inspirados a elaborarem dispositivos legais capazes de melhor regrar os acontecimentos do mundo dos transportes, especialmente os marítimos, e, assim, aproximarem-se mais da realidade, perfazendo o verdadeiro ideal do direito que é a eterna busca pelo justo.

Se a fortuidade ainda se perfaz nos casos de condutas humanas, cada vez menos se mostra presente nos casos de fenômenos naturais.

A construção naval, os elementos de prevenção, os sistemas de proteção das embarcações e até os de serviços de estudos das condições dos climas e dos mares constituem, todos combinados, fatores de proteção para a navegação.

Claro que os riscos existem, mas são cada vez menores e menos frequentes. Por outro lado, os riscos que os navios geram aos outros são cada vez maiores.

A rigor, um sinistro não ocorre por conta de um dado fenômeno climático, mas por causa de alguma falha operacional do transportador. A verdade nua e crua é exatamente essa e seu desprezo pode ser fonte de grande injustiça.

Com ou sem a adoção da teoria objetiva pura, nosso grande objetivo acadêmico, temos que os novos paradigmas do caso fortuito e da força maior não podem ser minimamente desprezados quando da análise do caso concreto e pesam tanto ou mais do que os elementos constitutivos da fortuidade: imprevisibilidade, inevitabilidade e irresistibilidade.

Os riscos da navegação são conhecidos e devem ser suportados pelo transportador, beneficiário maior e imediato que é do negócio. Hoje, não há mais sentido na sua sobrevalorização ou na mantença do antigo conceito de aventura marítima.

Quando tratamos dos riscos no transporte marítimo, devemos considerar aqueles aos donos das cargas, aos terminais portuários, às gentes em geral e ao meio ambiente, eis que os navios são potenciais fontes de danos.

Para terminar esta parte e enfatizar bem a mudança de paradigmas e a concentração de riscos em cada navio, reproduzimos comentário que fizemos para o Jornal A Tribuna (de Santos), Caderno Porto & Mar, sobre grande sinistro. Além de fortalecer argumentos, o registro é válido para que se marmorize um acontecimento histórico:

O MAIOR SINISTRO DE OVERBOARD DA HISTÓRIA: NAVIOS, ENORMES FONTES DE RISCOS

Dia 2 de dezembro próximo passado, em algum ponto do oceano Pacífico Norte, ocorreu mais um grande sinistro marítimo.

Aliás, grande não, enorme. O maior overboard da história: 1.900 contêineres caíram no mar.

Soube imediatamente porque a equipe de advogados que integro foi implicada no caso, por meio dos correspondentes em Londres.

Há interesses de donos de cargas e seguradores brasileiros em jogo. 

Por enquanto nada posso dizer sobre o sinistro propriamente dito. Sua regulação mal se iniciou e muita coisa pende de investigação e apuração.

Certo mesmo apenas duas coisas: prejuízos milionários em vista e justificável preocupação com o meio ambiente.

Não poucos contêineres continham cargas perigosas, produtos químicos ou elementos nocivos à natureza.

Trabalhos intensos serão feitos com o objetivo de resgatar esses milhares de contêineres e a conta só aumentará.

Todavia, não é do sinistro em si que desejo falar. Aliás, sequer condições tenho, ao menos por enquanto. Desejo apenas lembrar um tema recorrente em meus artigos: navios, fontes de riscos permanentes.

Navios são necessários, importantes, vitais para a economia global, mas também são os maiores protagonistas de danos ambientais e outros.

Estão cada vez maiores e transportam muito mais cargas do que antes. Há navios que carregam em seus porões e conveses cerca de 15 mil contêineres.

Os super-navios geram economia de tempo e lucros astronômicos aos armadores. O lado B é o de se tornarem potenciais causadores de danos gravíssimos.  

A equação é simples: aumentam-se os lucros dos armadores e, consequentemente, os riscos para a sociedade.

E nem se diga em eventual compensação com o barateamento dos fretes. Isso é algo que costuma pontuar discursos, mas que raramente se vê na realidade. Os fretes 27 aumentam e os donos de cargas são reféns de uma dinâmica negocial que raramente leva em conta suas vontades.

A pergunta que a sociedade tem que fazer, hoje, é: vale mesmo à pena a utilização desses super-navios?

O binômio custo-benefício satisfaz a todos ou apenas a um grupo, muito específico.

Problema maior ainda é outro: os navios estão cada vez maiores, tecnologicamente mais seguros e cercados de informações e recursos de proteção. A navegação, além de precisa, é a cada raiar do sol mais segura. Logo, sinistros, danos, ocorrem não por circunstâncias alheias ao navio, mas por alguma falha operacional, ponto.

Sendo assim, quanto maior o navio e também maior a quantidade de cargas nele contidas, maior serão os riscos e, consequentemente, os danos e prejuízos, sobretudo os ambientais.

Para cobrir o problema com tintas de cores mais intensas, dramáticas, tem-se – e a experiência me autoriza afirmar – que raramente os armadores assumem suas respectivas responsabilidades. 

Muito pelo contrário! Dela buscam fugir por meio dos mais impressionantes argumentos e até pelo uso de elementos excessivamente formais, alheios ao coração de um fato danoso: o sinistro em si.

Então e para concluir, se a tendência for mesmo a de se prestigiar os super-navios (quer me parecer, infelizmente, um caminho sem volta, já que não é de hoje que palavras como ganância e progresso são deliberada e erradamente confundidas), que as autoridades legislativas tenham o zeloso cuidado de incrementar o sistema legal de responsabilidade civil dos transportadores, imputando-lhes normas muito mais rigorosas.

É imprescindível proteger a jurisdição nacional, o princípio da reparação civil integral e os legítimos direitos de exportadores, importadores, terminais e seguradores de cargas brasileiros.

Por outro lado, esses protagonistas todos da economia têm que se opor ao conjunto abusivo de imposições que os armadores fazem antes dos transportes, blindando-se quanto aos deveres que são inerentes aos riscos de sua atividade.

Esses cuidados tornarão o negócio de transporte mais transparente, mais justo, mais ordenado, beneficiando a todos. A sociedade mundial agradece.

Em conclusão, afirmamos que se pode mais considerar o transporte marítimo de carga como aventura nem lhe dar os valores e pesos do passado. A atividade, hoje, envolve maiores riscos aos outros do que a si mesma e é poderosa e potencial causa de danos.

O transportador há de responder, sempre, objetiva e integralmente pelos danos e prejuízos que causar, sejam aos donos de carga, sejam aqueles que se valem dos seus 28 serviços, sejam, ainda, aos que lhe fizerem as vezes. Não há escusas. Mesmo as causas excludentes de responsabilidade merecem calibragem no reconhecimento, observando-se os chamados novos paradigmas (dos riscos). Ao transportador competirá provar o benefício legal conforme as particularidades do caso concreto, as quais devem ser muito cuidadosamente esgrimidas.

Não se exige daquele que busca a reparação civil ou o ressarcimento outra coisa senão a demonstração do nexo de causalidade. Ao transportador se exige tudo e com razão. Essa visão legal restabelece o desequilíbrio factual. Tendo apenas o transportador o poder de controle da atividade, cabem-lhe todos os ônus quando ela gera danos. Nada além, nada aquém.

 

[1] Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 353.

[2] Da inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo: Saraiva, 1955. p. 341.

[3] N. do A.: conclusão inspirada em “LYON CAEN ET RENAULT”, Traité de droit commercial. III, 593, SABRUT, Transport des merchandises. p. 653 e ss.

[4] Guia Marítimo. São Paulo, ano 6, n. 117, 1ª quinzena abr. 1997. 5      Programa de responsabilidade civil, p. 327.

[5] Aspectos Jurídicos: o que interessa ao seguro. Revista do IRB, Rio de Janeiro: 44, (232), p. 20, set.-dez. 1983.

[6] Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

[7] https://www.conjur.com.br/2021-jul-30/reflexoes-trabalhistas-atividades-risco-responsabilidadeobjetiva-acidentes-trabalho

 

[8] Art. 749. O transportador conduzirá a coisa ao seu destino, tomando todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado ou previsto

[9] O sinistro do navio petroleiro Prestige na costa da Galícia, Espanha, em 13 de novembro de 2002, foi, até então, a maior catástrofe ambiental da história da navegação e a conscientização geral de que navios são fontes de riscos e de danos monumentais. O caso da usina nuclear de Chernobyl, antiga URSS, foi desastre cujos efeitos danosos até hoje se sentem, vitimou milhares de pessoas e transbordou os limites do país em que ocorreu, demonstrando ao mundo a capilaridade dos danos.

[10] In Transporte marítimo de mercancías: los elementos claves, los contratos y los seguros, 1ª edición, Marge Books, Barcelona: 2017, p. 55-56

[11] N. do A.: muitos comentaristas preferem a palavra inevitabilidade ao invés de inesperabilidade. 13 Estudos do mar brasileiro – A Lei do Mar. Rio de Janeiro: Renes, 1972. p. 152.

[12] in Contratos de Transporte: novos paradigmas do caso fortuito e força maior, Revista dos Tribunais (Thomson Reuters), São Paulo: 2021, p. 127-129

[13] Escola Nacional de Seguros, p. 21.

[14] N. do A.: e ao se falar em adversidades, fala-se nas mais graves e violentas condições possíveis, sendo poucos os fenômenos desconhecidos ou verdadeiramente imprevisíveis e inesperados. O homem está longe de dominar os mares. A luta constante dos holandeses e seus diques contra as forças do Mar do Norte é prova cabal da impossibilidade de domínio pleno; mas, da mesma forma, o homem contemporâneo não é mais o aventureiro dos tempos das Grandes Navegações, haja vista o conhecimento, a tecnologia, os equipamentos e as medidas de segurança empregados na arte da navegação marítima.

 

*Paulo Henrique Cremoneze

É advogado com atuação em Direito do Seguro, sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, parceiro de SMERA-BSI, mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro pela Universidade de Salamanca (Espanha), membro da Academia Nacional de Seguros e Previdência, diretor jurídico do CIST, membro da AIDA e do IASP, presidente do IDT, colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna de Santos, autor de livros jurídicos de Direito do Seguro e de Direito dos Transportes. Coordenador da Cátedra de Transportes da ANSP.

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