Este comentário se ancora no exercício prático do Direito Civil, do Direito do Transporte, do Direito do Seguro, em vez de adotar uma postura mais acadêmica e teórica em relação aos três.

Em defesa do mercado segurador (carteira de seguro de transporte) costumo trabalhar no ressarcimento em regresso contra transportadores de carga; sejam marítimos, sejam aéreos, sejam rodoviários. No caso específico dos rodoviários, noto um detalhe recorrente. Costumam os transportadores basear sua em caso fortuito ou força maior. Isso quando não tentam emplacar uma simples negativa geral de responsabilidade.

Tais linhas de defesa não são exatamente erradas. Salvo a negativa genérica, que é em si mesma absurda, são até em parte esperadas. Erradas mesmo são as interpretações do Direito dadas diante dos fatos.

Poucos transportadores chamam de força maior ou caso fortuito fenômenos atípicos a esses rótulos. Para facilitar a compreensão do coração deste breve comentário, não convém alongar seu conteúdo com uma leva desnecessária de conceitos; sejamos pragmáticos e chamemos força maior e caso fortuito simplesmente de “fortuidade”. E o que é a fortuidade dentro do contexto do transporte de carga?

Definamos assim: é o fenômeno natural ou humano, imprevisível, inesperado e irresistível, que impede o cumprimento perfeito do transporte. A definição é simples, porém completa. Se o evento, natural ou humano, não for ao mesmo tempo imprevisível, inesperado e irresistível, não há fortuidade.

Nunca é demais lembrar que o transportador é devedor de obrigação contratual de resultado. Segundo longa tradição jurídica brasileira, essa obrigação de resultado implica presunção legal de responsabilidade em caso de inadimplemento. Assim, o credor insatisfeito não precisa provar a culpa do devedor inadimplente. Basta provar o nexo de causalidade, isto é, o contrato de transporte violado, o dano (e o consequente prejuízo) e nada mais.

Caberá ao transportador, querendo e sendo o caso, alegar e provar alguma excludente de responsabilidade: caso fortuito, força maior ou vício de origem. E aí que surgem os problemas. Em verdade muitas vezes problemas falsos, fictícios, cuja defesa fica a bailar entre o bizarro e o surreal.

Dou alguns exemplos. Já vi alegarem fortuidade para as seguintes situações:

1) Necessidade fisiológica do motorista;

2) Estouro de pneu;

3) Buraco na pista de rodagem;

4) Óleo na pista;

5) Cachorrinho atropelado;

6) Manobra arriscada de outro veículo;

 7) Enxame de insetos no para-brisa;

8) Café derrubado no motorista durante a viagem;

9) Sono ao volante;

10) Saque de carga esparramada no chão;

 11) Colisão protagonizada por outrem; etc.

 

Alguns exemplos são tão inverossímeis, tão doidos que não é preciso comentar. Fiquemos nos menos extravagantes. Por exemplo, sono ao volante. Não é fortuidade. É erro grave, gravíssimo, do motorista.

Buraco ou óleo na pista, bem como colisão causada por outro veículo, são riscos inerentes ao negócio de transporte. Causas que não se ajustam ao conceito legal de fortuidade, porque previsíveis, esperadas, comuns até.

Todo transportador sabe que pode transitar por pistas esburacadas, imperfeitas, sujas, irregulares. Sabe da possibilidade de ser diretamente prejudicado por outro veículo. Logo, nenhuma dessas causas configura fortuidade. E se não configuram fortuidade, não excluem a presunção legal de responsabilidade do transportador que não cumpre a obrigação de resultado.

Não se trata de considerar ou não o respeito ao dever de precaução (que incide em casos de excesso de velocidade, por exemplo) ou do dever de preservar a integridade física da carga (falha de estivar a bordo da carreta ou do baú do veículo transportador), mas de simplesmente considerar os contornos vivos do dano contratual, da obrigação de resultado e do manejo de atividade de risco. Trata-se de valorizar a figura do credor insatisfeito (que migra para o segurador sub-rogado) e da necessidade de se punir eficazmente, na justa medida, o causador do dano, o devedor inadimplente.

Esses atos e fatos não são juridicamente relevantes para impedir a imputação de responsabilidade do transportador, pouco importando discutir a eventual culpa de um outro. No máximo pode-se dizer que tais atos e fatos caracterizam fortuitos internos. Segundo a doutrina, seguida de perto pela jurisprudência, o fortuito interno é o evento não querido, mas pertencente ao rol de riscos de uma dada atividade. Não exoneram, portanto, o devedor de obrigação contratual e resultado de reparar o dano.

O danador, devedor de obrigação de resultado, responde pelo prejuízo, ainda que a culpa no mundo dos fatos seja de outro.

Dentro da dinâmica da responsabilidade civil contratual e objetiva, a culpa do terceiro permitirá ao responsabilizado civilmente buscar dele o ressarcimento em regresso do que pagou ao credor insatisfeito.

Não há nisso qualquer injustiça ou erro. Encerrado na figura do contratante débil, o dono da carga não tem gestão sobre o exercício do transporte. Por isso o ordenamento lhe oferece medidas para equilibrar a assimetria factual em relação ao transportador. Por exemplo, tenhamos diante de nós um litígio entre segurador sub-rogado nos direitos do dono da carga (segurado) e o transportador cujo caminhão uma colisão fez tombar. Tendo pago a indenização securitária a Seguradora sub-roga-se nos direitos do dono da carga, obtendo então o direito de buscar em regresso do transportador o valor que pagou, conforme inteligência do art. 786 do Código Civil e da Súmula 188 do Supremo Tribunal Federal.

O transportador réu será responsável pelo evento danoso, pois se comprometeu a entregar a carga nas mesmas condições recebidas e não conseguiu executar sua obrigação. É caso de dano contratual, inadimplemento de obrigação de resultado com imputação objetiva de responsabilidade.

A Autora, seguradora sub-rogada na pretensão original do dona da carga, funda sua pretensão de ressarcimento em regresso nos artigos 730, 749 e 750 do Código Civil e na Lei Federal 11.442/2007, que trata do transporte rodoviário de carga.

Já o dissemos: tradicionalmente a obrigação de transporte é de resultado e submetida ao conceito objetivo de responsabilidade; mas, ainda que não se tratasse de obrigação de resultado, o signo da responsabilidade objetiva se faria presente pelo fato de o transportador de cargas manejar atividade de risco, conforme o §2º do art. 927 do Código Civil.

O conceito de atividade de risco é especialmente importante porque afasta completamente a possível alegação da Ré de não ser vítima, e não a causadora do sinistro. Mas vejam que não se questiona se ela foi ou não a protagonista do acidente, e sim o dever objetivo em relação aos bens sob sua custódia.

Aos olhos do sistema legal, da doutrina e, principalmente, da jurisprudência, o acidente de trânsito, seja quem for o culpado de fato, é risco umbilicalmente ligado à atividade do transportador de carga. Um fortuito interno, pois, incapaz de afastar a presunção legal de responsabilidade pelos danos.

Só o fortuito externo, capaz de caracterizar força maior, afasta a imputação de responsabilidade do transportador. O sinistro deste caso hipotético não se ajusta aos moldes do fortuito externo, perfazendo um risco intrínseco ao transporte de cargas, e por essa razão não afasta o dever de indenizar por faltas e avarias.

Depois de ressarcir a seguradora, poderá o transportador enfim buscar o ressarcimento em regresso contra quem de direito. Essa é a dinâmica da responsabilidade civil objetiva, a que disciplina a atividade do transportador de cargas.

O transportador tem o dever de ressarcir em regresso a quantia que a Autora indenizou ao seu segurado, o dono da carga avariada, eis que é indiscutível sua responsabilidade contratual pelos danos e pelo consequente prejuízo. E o ressarcimento há de observar o princípio da reparação civil integral, previsto no art. 944 do Código Civil e no rol exemplificativo dos direitos e garantias fundamentais do art. 5º da Constituição Federal. Sendo assim, tem-se por certo que não é qualquer situação fática que autoriza a figura legal da fortuidade. Muito pelo contrário. A maior parte dos casos de faltas e avarias implica responsabilidade do transportador.

 Em muitos casos, e a literatura de Direito dos Transportes autoriza dizê-lo, há não só o dano contratual e a responsabilidade objetiva como também a culpa em sentido estrito do transportador, não raro grave, caracterizada por condutas ativas ou omissivas.

Em tais litígios a discussão a respeito da culpa é irrelevante, o que não significa que ela não se faça presente e permaneça ali quieta, à sombra do fato. Por mais que reconheça minha parcialidade por defender o mercado segurador, posso afirmar, em boa-fé e na forma de testemunho fiel, que todo tombamento de veículo de carga resulta na responsabilidade do transportador.

O saque da carga esparramada na pista por causa do tombamento não exclui a responsabilidade do transportador, porque é com causa, não causa. O saque somente ocorreu porque o veículo tombou. Resultado? Responsabilidade do transportador.

 Para um caso ser realmente merecedor da fortuidade é necessário surgir algum fenômeno que fuja, e muito, do risco ínsito da atividade (o fortuito interno), verdadeiramente ajustado aos elementos imprevisibilidade, inevitabilidade e irresistibilidade.

Anos atrás passou pela região de Campinas um tornado surpreendente e inédito. No Brasil, por se tratar de fenômeno extraordinário, seria capaz de tipificar a fortuidade. Uma manifestação popular que fuja dos propósitos iniciais e, contaminada pelo histerismo coletivo, deságue na violência e no crime, pode excluir a responsabilidade do transportador, se o atingir.

O roubo é assunto complexo, espinhoso; divide a doutrina e oscila na jurisprudência. Se o furto não gera polêmica, porque pressupõe uma nítida desídia do transportador, o mesmo não se dá com o roubo.

Há decisões judiciais reconhecendo a responsabilidade do transportador mesmo em casos de roubos de cargas. Porém há muitas outras que a afastam. Ninguém discute que o roubo seja previsível em um país como o Brasil; mesmo esperado, a rigor é irresistível, até pelo grau de violência empregado pelos criminosos. Por isso, recomenda-se cuidado extremo na regulação do sinistro. Isso porque o roubo quebra a presunção legal de responsabilidade do transportador e exige a prova da sua culpa. Há uma espécie de retrocesso jurídico e uma nova inversão do ônus da prova.

O dono da carga, ou o segurador sub-rogado, deve provar a culpa do transportador, aquela conduta comissiva ou omissiva que facilitou a ocorrência e que, de algum modo, lhe deu azo. Em suma: o velho e conhecido agravamento de risco ou elevação da probabilidade de que tal ocorresse.

Se o transportador não observou o dever de precaução, não agiu com cautela e/ou desrespeitou as normas do programa de gerenciamento de risco, e por causa de uma dessas circunstância ou do conjunto delas se constatou no caso concreto o liame com o roubo, talvez seja possível a imputação de responsabilidade.

De todo modo, o roubo não se insere na essência deste estudo, especialmente direcionado ao fortuito interno e a sua incapacidade de afastar ou mesmo atenuar a responsabilidade do transportador por danos na carga confiada para transporte.

 A culpa de terceiro, ainda que comprovada, não é bastante para afastar a presunção legal de responsabilidade do transportador de carga por faltas e avarias, impondo-lhe, portanto, o dever de reparação integral. E isto é algo que se tem que ter em mente, até mesmo para o bem do debate jurídico e o uso adequado do Direito.

O Processo Judicial não se presta aos casuísmos.


*Paulo Henrique Cremoneze

É advogado com atuação em Direito do Seguro, sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, parceiro de SMERA-BSI, mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro pela Universidade de Salamanca (Espanha), membro da Academia Nacional de Seguros e Previdência, diretor jurídico do CIST, membro da AIDA e do IASP, presidente do IDT, colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna de Santos, autor de livros jurídicos de Direito do Seguro e de Direito dos Transportes. Coordenador da Cátedra de Transportes da ANSP.

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