Heresia afirmar que o suicídio é um acidente pessoal, a começar porque tal importaria premiar o ato, inclusive premeditado, com o pagamento em dobro do capital segurado aos beneficiários (morte natural e acidental), em relação à morte natural, que só contempla o capital simples.

O CC de 2002, art. 798, cria uma regra, comportando, portanto, exceção, que assegura ao beneficiário o direito ao capital estipulado se o segurado suicidar após dois anos de vigência do contrato, sem, contudo, vedar outras hipóteses de excludentes por suicídio que estejam moldadas no próprio conceito de seguro nos seus elementos essenciais, como seria o caso do suicídio premeditado, mormente no seguro de acidentes pessoais, como, aliás, sempre entenderam STF e STJ, sumulando jurisprudências que validam excludentes de suicídio premeditado. Afinal, todo padrão tem seu viés.

A premeditação não pode, nem deve, ser considerada somente no momento da celebração do contrato, também no ato do sinistro. Mesmo passados dois anos da vigência, o ato voluntário não poderia ser coberto pelo seguro, do contrário estar-se-ia permitindo ao segurado marcar dia e hora para o sinistro, sabido universalmente que qualquer seguro, contrato prospectivo, aleatório, visa à satisfação de uma necessidade eventual, de um interesse legítimo (CC art. 757) sobre um evento futuro e incerto, que independa da vontade do segurado, pena de se transformar em jogo e aposta. No seguro, o evento futuro de regra não pode ser desejado pelo segurado (salvo nos dotais, de sobrevivência, porque sobreviver é desejo de todos, exceto para o suicida, que não escolheria tal modalidade), enquanto no jogo esse evento é desejado pelo apostador!…

A Comissão de Medicina de Seguro da FENASEG exarou Parecer pelo qual, depois de fundamentadas considerações médico-legais, conclui que o suicídio em regra é ato voluntário, e que jamais poderia ser qualificado como doença, muito menos como acidente pessoal, posto que lesão auto provocada intencional, assim definida e classificada internacionalmente, tampouco como evento súbito, onde tempo, espaço e circunstâncias se confluem, e suas origens estão, incontestavelmente, ligadas a transtornos psiquiátricos prévios e identificáveis.

O suicídio, premeditado, intencional, voluntário,não raro se reveste de dolo, repudiado pelo art. 762 do atual CC, que diz nulo o contrato de seguro que se filiar a dolo do segurado, do beneficiário ou do representante de um ou de outro, esteja o dolo no antecedente ou no consequente. Do contrário, nenhum sinistro doloso, premeditado, deixaria de ser pago se se demonstrar que o interessado, na conclusão do contrato, não tinha a intenção de realizar um sinistro após a vigência. Pouco importa, num seguro de automóvel, por exemplo, se o segurado resolveu atear fogo no seu veículo apenas, digamos, no oitavo mês de vigência da apólice, se esse seu desejo pirotécnico só aí se manifestou. O dolo nulifica o ato não só na contratação, mas também no consequente, até porque o seguro é contrato de trato sucessivo e de execução continuada.

Ainda que o segurado, ultrapassando a carência, nunca tenha tido a ideia de se matar, venha, ao depois, premeditar a sua própria morte, contrariando fundamentos do seguro, contrato aleatório, não poderia o seu beneficiário fazer jus ao capital.

Todavia, mesmo desafiando tais regras, o Código Civil de 2002 teria estabelecido um critério objetivo, visando a eliminar as enormes dificuldades na liquidação de um sinistro em que o segurado suicidou: houve o suicídio na carência, premeditado ou não, por presunção absoluta o capital não será devido, apenas a devolução da reserva matemática caso existente e parcialmente correspondente à cobertura de suicídio, pois qualquer outro sinistro, que não o suicídio, ocorrido na carência estaria coberto (ao contrário dos seguros estruturados no regime de capitalização, a reserva matemática inexiste nos seguros realizados por repartição simples), entretanto, se o evento se der após a carência, o capital será devido, por presunção relativa.

O art. 798 do Código, pelas mais comezinhas regras de interpretação sistemática em face dos demais dispositivos do Código que delinearam os incontrariáveis fundamentos do seguro, deixa espaço, e largo, para a não cobertura do suicídio premeditado, mormente no seguro de acidentes pessoais, mesmo após a carência, pois não faria sentido que o dispositivo em causa tivesse por propósito contrariar a base do contrato de seguro cunhada pelo mesmo legislador, no mesmo sistema de vasos comunicantes em que consiste o Código Civil.

Conclui-se, sem esforço de interpretação, que o legislador, ao escrever o art. 798, pretendeu excluir de seu alcance, inclusive do parágrafo único, o suicídio no seguro de acidentes pessoais, coerente com a regra que estabeleceu no dispositivo imediatamente anterior, tanto que, ao determinar no art. 797 que somente “no seguro de vida para o caso de morte é lícito estipular-se um prazo de carência“, deixou clara a sua inadmissibilidade para os “seguros de acidentes pessoais” – a propósito, se o suicídio, por absurdo, pudesse ser enquadrado como acidente pessoal, não poderia haver carência, não só pela vedação legal como porque seria impróprio mesmo estabelecer prazo de carência para cobertura de morte acidental -, logo, criada assim a regra, desnecessário seria repeti-la, mormente no artigo logo seguinte, ou seja, a de que qualquer prazo de carência em seguros de pessoa, inclusive no suicídio, só é válido para os seguros de vida em caso de morte, daí decorrendo que o suicídio, independentemente de carência, é risco que o legislador não veda seja excluído da cobertura do seguro de acidentes pessoais.

O suicídio não se enquadra nem como acidente nem como doença, não é morte natural nem acidental, mas um fato, que a rigor não deveria merecer a cobertura do seguro, se não pelos já citados dispositivos, também pelo art. 13, do mesmo CC, considerando que este veda, “salvo por exigência médica, o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes“. É lógico que o autocídio é a maneira mais extrema de disposição do próprio corpo, quiçá da alma, com diminuição permanente da integridade física, forma eloquente para se exemplificar as hipóteses alcançáveis pelo art. 13, posto que não só diminui como elimina, letalmente, a integridade física, e com forte contrariedade aos bons costumes (o suicídio contraria inclusive o direito canônico).

A propósito, como alguém pode condenar-se à morte e ser o próprio carrasco e executor de tão drástica sentença?  O suicida não dá direito de defesa à sua vítima – ele próprio – quando está ausente, isto é, fora de si. Na história da humanidade o único suicídio automerecido foi o de Hitler… Mas Hitler não faz parte da história da humanidade.

Se de acidentes pessoais o seguro, mesmo que de pessoa, o capital não seria devido porque o suicídio, máxime se voluntário, afronta o conceito de acidente pessoal plasmado em todos os contratos e normas pertinentes, no Brasil e no Mundo, onde se costuma excluir simplesmente o fato do suicídio, qualifique-se-o ou não. Exatamente porque o suicídio não pode ser equiparado a um “evento com data caracterizada, exclusivo e diretamente externo, súbito, involuntário, violento, e causador de lesão física, que, por si só e independente de toda e qualquer outra causa, tenha como consequência direta a morte, ou a invalidez permanente, total ou parcial, do segurado, ou que torne necessário tratamento médico...” (conceito dado pela própria CNSP 117/04).

Pode-se medir, sem dificuldade, que ao suicídio, mormente premeditado, faltariam os elementos conceituais da involuntariedade, subtaneidade e direta exterioridade, bem como o da independência de qualquer outra causa, já que poderia ser causado por perturbação mental, pela perda do instinto de preservação da vida. Se for premeditado, obviamente não é involuntário, até porque praticado pelo próprio paciente, nem mesmo súbito, por conseguinte, porquanto ato previamente conhecido do próprio segurado, pois, em regra, o suicídio costuma se relacionar com transtornos prévios e identificáveis, em circunstâncias, portanto, de tempo e espaço. Não é diretamente externo porque começa e se esgota na própria pessoa do suicida, salvo quando fatores externos, como os da instigação, auxílio ou induzimento contribuem para o suicídio, que, aliás, são as formas terrenas de puni-lo já que não se pode punir o morto, como crimes capitulados no Código Penal, sobre o que, a propósito, deixo à reflexão do leitor sobre se o fato de se conceder cobertura securitária para o suicídio não seria forma de induzimento, auxílio ou instigação ao desiderato do segurado de se matar, pois, quem sabe, não seja a cobertura do seguro um atrativo mesmo – sem o qual o segurado estaria desmotivado ao ato extremo -, um importante fator de induzimento ao suicídio, seja no momento da contratação, seja pela simples lembrança, pelo segurado, da existência de um seguro já antigo, cujo capital, não se olvide, é suscetível de aumento, caso em que esse aumento, mesmo antes ou depois de dois anos, de qualquer forma deveria ser também considerado para efeito da carência.


Ricardo Bechara Santos

*Advogado especializado em Direito do Seguro;
Sócio do Escritório Miguez de Mello Advogados;
Presidente da Comissão Jurídica da FENASEG;.
Consultor Jurídico da Federação e Sindicato das Seguradoras;Acadêmico da ANSP.
rbechara@miguez.com.br