Por mais cuidado que se tome na elaboração de uma lei, sempre ocorrerão questões dúbias e polêmicas. É o caso do texto do § único, do artigo 771, do Código civil Brasileiro, o qual estabelece: “Correm à conta do segurador, até o limite fixado no contrato, as despesas de salvamento consequente ao sinistro”.

Essa disposição está inserida no Capítulo XV, Do Seguro – Disposições Gerais, do Código Civil Brasileiro. Portanto, ela é aplicável tanto ao seguro de dano, como ao seguro de vida, já que está entre as disposições gerais.

No seguro de dano o entendimento fica mais definido, inclusive por ser complementado pelo art. 779. Se tiver de derrubar uma parede para impedir que o fogo se propague para o resto do imóvel, não há dúvida, o prejuízo consequente da destruição dessa parede deverá ser indenizado, desde que não tenha se esgotado a importância segurada.

Já no seguro de vida, bem complexa a interpretação desse § único do art. 771. Imaginem o segurado lá em seu sítio, a muitos quilômetros de distância de um hospital e repentinamente sente dores fortes no peito. É o quadro típico de um enfarte.

Dada à necessidade de um atendimento urgente, ele é conduzido ao hospital por um helicóptero e para agravar não tem plano de saúde.

Aí surge a questão polêmica, que, aliás, me foi formulada em uma das minhas palestras. A despesa de condução havida com o helicóptero é de responsabilidade da seguradora?  As despesas hospitalares para evitar a morte do segurado são indenizáveis? Lembrem-se, tais despesas foram feitas para evitar o sinistro, para evitar a morte do segurado.

Podem ser tidas como despesas de salvamento?

Bem, uma primeira hipótese: o segurado apesar do helicóptero e do hospital vem a falecer. O capital segurado será pago integralmente em razão da morte, logo não haverá capital excedente para as despesas hospitalares e de transporte. Em tal hipótese, é de se entender que tais despesas ultrapassam o capital de cobertura e logo, claramente, não haverá capital disponível.

Mas, em uma segunda hipótese: o segurado, graças ao rápido transporte de helicóptero e ao atendimento hospitalar, salvou-se. Portanto, tais providências evitaram o sinistro. E aí? A Seguradora deverá indenizar tais gastos?

Abrindo um parênteses em nosso história, registro que o Dicionário de Seguros, de Amílcar Santos, editado Pelo Instituto de Resseguros do Brasil, abril de 1944, define “SALVAMENTO – AÇÃO DE SALVAR, DURANTE O SINISTRO, OS OBJETOS SEGURADOS”. Aliás, define também, “SALVADOS – DENOMINAÇÃO DADA AOS OBJETOS, OU À PORÇÃO DE OBJETOS, COBERTOS PELO SEGURO, QUANDO SALVOS DO SINISTRO”.

Como se observa, o vocábulo “SALVAMENTO” tem sentido próprio para o seguro e se refere a objetos e não à vida humana.

O legislador deve sempre ter o cuidado de empregar os vocábulos com muita atenção, atendo-se ao seu sentido particular, especialmente quando esse vocábulo está inserido dentro do campo próprio que lhe dá sentido particular.  É o caso de SALVAMENTO no campo do SEGURO.

Porém, no caso que estamos analisando, parece que o legislador deixou escapar tal detalhe e serviu-se de um vocábulo pouco apropriado. Afora essa observação, sem dúvida que efetivamente sua vontade foi a de incluir as despesas necessárias para salvar uma vida entre as indenizáveis pelo seguro de vida.

De observar-se, entretanto, que entre as despesas hipotéticas que elegi neste comentário estão as hospitalares. Ocorre que existem coberturas específicas para cobertura de despesas médicas e hospitalares, que são as oferecidas pelos planos de saúde. Ora, se o segurado não as contratou, não terá direito a ser ressarcido de suas despesas realizadas com médicos e hospitais. Afinal, se ele contratou apenas um seguro de vida, não pode pleitear a cobertura para as despesas hospitalares, da mesma forma que se contratar apenas cobertura para incêndio, não terá direito à cobertura dos danos causados pelo vendaval.

A propósito, se essas despesas médicas, cirúrgicas, hospitalares forem consideradas despesas de SALVAMENTO, por analogia toda e qualquer despesa desse tipo terá de ser, também, considerada de SALVAMENTO. Por exemplo, cirurgia de apendicite em quadro agudo. Ou opera ou morre. Diversos tipos de câncer.  Ou opera ou morre. Se ampliarmos o conceito de SALVAMENTO, em todas essas cirurgias, quando bem sucedidas, a seguradora terá de reembolsar as despesas havidas, só pelo fato de ter vendido o seguro de vida.

Por tais razões, parece muito claro que as despesas médicas e hospitalares não serão indenizadas pela seguradora dentro do seguro de vida, ainda que se fundamente o pedido no § único, do art. 771, ou seja, como despesas de salvamento.

A questão relativa à indenização pelo transporte até o hospital, merece outra conclusão, desde que haja uma indispensável necessidade de urgência e que implique em um transporte especializado. Primeiro, porque é uma despesa destinada ao “salvamento”, pois, o transporte será imperiosamente urgente e especializado, ou o segurado falece.  Segundo, porque inexiste cobertura específica de transporte até o hospital, apesar de excepcionalmente oferecerem tal cobertura inclusa em alguns planos de saúde

Pois bem, concluindo, entendo que as despesas médicas hospitalares não gozarão de cobertura, vez que existe um produto próprio para tanto. Porém as despesas excepcionais de transporte, atestadas pela equipe médica a imperiosa necessidade de atendimento com urgência, a ponto de justificar o deslocamento especializado do segurado/paciente,  exigindo  um helicóptero, ou outra modalidade especial, estas deverão ser indenizadas, desde que o segurado seja salvo.

Como forma de se assegurar de surpresas decorrentes da flexibilidade de interpretação que os Tribunais fazem, quase sempre em favor do consumidor, o ideal é que a seguradora já estabeleça um capital de cobertura para as despesas de salvamento.

Este é o meu pensamento.

Na abertura deste comentário, afirmei que a questão era dúbia e polêmica, e, portanto, como tal, sujeita a divergências, pelo que a coloco em debate.


Homero Stabeline Minhoto

Vice Presidente da ANSP e Advogado especializado em Seguros.

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