I – INTRODUÇÃO

“A lei do seguro sob a análise da principiologia legislativa“, objeto deste ensaio, guarda sintonia com o que doutrinou o Professor Humberto Ávila, em sua primorosa obra “Teoria dos Princípios”, quando, em sede de Considerações Introdutórias, enfatiza:

“É até mesmo plausível afirmar que a doutrina constitucional vive, hoje, a euforia do que se convencionou chamar de Estado Principiológico”. E, ato contínuo, arremata: “Trata-se, em especial e paradoxalmente, da efetividade de elementos chamados fundamentais – os princípios jurídicos”.[1]

Em verdade, estes princípios jurídicos também se esgarçam em regras comportamentais de grande valia para balizar o legislador na busca de objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, insertos no art. 3º, inciso I, da CF de 88, objetivando “construir uma sociedade livre, justa e solidária.

O Direito se expressa por meio de normas. As normas se exprimem por meio de regras ou princípios. As regras disciplinam uma determinada situação: quando ocorre essa situação, a norma tem incidência. Para as regras vale a lógica do tudo ou nada (Dworkin). Quando duas regras colidem, fala-se “em conflito”; ao caso concreto uma só será aplicável (uma afasta a aplicação da outra). O conflito entre regras deve ser resolvido pelos meios clássicos de interpretação: a lei especial derroga a lei geral. De sua vez, os princípios são mais amplos. Seu espectro é muito mais elástico que o das regras.[2] Cuida-se, aqui, digo eu, de uma interpretação mais teleológica.

No contrato de seguro, adverte “Maurício Gravina”, afirmam-se princípios gerais constitucionais como a livre iniciativa, legalidade, propriedade privada, livre concorrência e defesa do consumidor; princípios de direito civil e comercial, especialmente no campo das obrigações; assim como atuam princípios específicos do Direito dos Seguros, com aplicação direcionada a esse microssistema.”[3]

António Menezes Cordeiro, festejado jurista português, doutrina em sua obra sobre o tema que “o direito dos seguros sistematiza as normas e os princípios conexionados com os contratos de seguro. E em paralelo, a mesma expressão designa a correspondente disciplina jurídica, nas vertentes teórica e prática”.[4]

Dessarte, princípios jurídicos securitários como o da anterioridade do risco, do interesse, da indenização em razão do sinistro, do pagamento do prêmio, assim como comportamentos estribados na boa-fé dos contratantes, notadamente do segurado, de lege lata, previsto a partir do art. 765 do Código Civil de 2002, entre outros, estão permeados em toda a estrutura jurídica da legislação de seguros.

II – OS ELEMENTOS DO CONTRATO DE SEGURO

(a) As Partes e os Terceiros

“O contrato de seguro é celebrado entre o segurador e o tomador do seguro, relativamente a um certo risco. Esse risco pode reportar-se à esfera do próprio tomador ou à de outra pessoa. Tal eventualidade obriga a isolar outro figurante: o segurado”.[5]

O PLC nº 29/2017 – antigo PL 3.555/2004 -, que tramita, atualmente, no Senado da República, sob a relatoria do senador Armando Monteiro, sistematiza com normas mais precisas os princípios jurídicos do contrato de seguro, ao tratar com mais requinte o que está disciplinado no atual artigo 757 do Código Civil, quando, em redação paralela, inserta no artigo 6º do aludido projeto, dispõe:

Art. 6º. Pelo contrato de seguro, a seguradora se obriga, mediante o pagamento do prêmio equivalente, a garantir interesse legítimo do segurado ou do beneficiário contra riscos predeterminados.

 Parágrafo único. As partes, os beneficiários e os intervenientes devem conduzir-se segundo os princípios de probidade e boa-fé, desde os atos pré-contratuais até a fase pós contratual”.

E, no artigo subsequente deste PLC, vale dizer, 7º, está dito, verbis:

“Só podem pactuar contratos de seguros sociedades que se encontram devidamente autorizadas na forma da lei e que tenham elaborado e aprovado as condições contratuais e as respectivas notas técnicas e atuariais perante o órgão supervisor e fiscalizador de seguros”.

Aliás, tal redação lembra o que se encontrava expresso no parágrafo primeiro do artigo 20 do Código Civil de 1916, hoje, mais enxuto na previsão legal do parágrafo único do art. 757 do CC de 2002.

(b) Do Interesse

Assim, também, a figura jurídica, rectius, o princípio do interesse está melhor explicitado no PLC nº 29/2017, a saber:

Art. 10. A eficácia do contrato de seguro depende da existência de interesse legítimo.

  • 1º. A superveniência de interesse legítimo torna eficaz o contrato desde então.
  • 2º. Se for parcial o interesse legítimo, a ineficácia não atingirá a parte útil.
  • 3º. Se for impossível a existência do interesse o contrato será nulo”.

É preciso que se faça, aqui, à guisa de diletantismo, um pequeno registro daquilo que nos ensinou mestre Pontes de Miranda ao tratar da dicotomia entre os planos da existência, validade e eficácia dos Atos Jurídicos em sua monumental obra Tratado de Direito Privado, posteriormente exposta, a meu sentir, em nova roupagem desenvolvida  por Miguel Reale em sua conhecida Teoria Tridimensional, quando tratou de abordar o Direito sob três aspectos básicos e primordiais, ou seja, (i) o aspecto fático, (ii) o axiológico e (iii) o normativo.

(c) O Risco

Secundado em renomados autores estrangeiros, “Gravina” aduz que o “risco é um elemento causal do contrato de seguro. Está na gênese deste contrato, ao lado do interesse, legitimidade e demais circunstâncias necessárias à contratação”.[6]

Ele, risco, está neste particular melhor explicitado nos artigos 14 a 20 do PLC nº 29/2017.

Ao azo, externei meu posicionamento ao tratar “do risco” em ensinamentos hauridos do mestre espanhol Garrigues, ao registrar “que a seguradora não responde propriamente pelo risco em si causado pelo segurado, a não ser nos casos de responsabilidade civil, no qual ela, seguradora, obriga-se a reembolsar as despesas que seu segurado, por ato culposo, tenha lesado terceiro“.[7]

III- Demais Princípios Jurídicos do Contrato de Seguro

A relação do contrato de seguro envolve outros princípios jurídicos, que se acham imbricados aos acima expostos, tais como “o prêmio”, “indenização securitária” e “boa-fé”.

Sem todos eles juntos, o contrato de seguro não se sustenta.

De acordo com Pontes de Miranda, jurista do século passado, o “prêmio é a prestação do contraente que quer o seguro. O segurador assume o risco; para que isso ocorra, o contraente promete prestar ou presta desde logo o prêmio. O étimo parece mostrar que o sentido de prêmio, no seguro, é mais próprio, do que o de premiar algum ato já praticado ou obra feita (praiemiom).”[8]

O artigo 763 do Código Civil, assim disciplina:

Art. 763. Não terá direito a indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação.”

À guisa de ilustração, por exemplo, o recebimento “da indenização securitária”, em ocorrendo o sinistro – o termo sinistro – advém do latim sinister, que significa o lado esquerdo,[9] o Superior Tribunal de Justiça tem mitigado este princípio através de inúmeras decisões que entendem, que quando o segurado deixa de pagar o prêmio do seguro na época e tempo convencionado, é imprescindível sua notificação para que se dê o cancelamento da apólice, posto que a simples mora no adimplemento contratual não é causa, em si, de negativa do pagamento da indenização securitária. Neste sentir, o brocardo lançado na obra do Professor de Gênova, Umberto Pipia, na parte que trata do risco não se faz mais presente às inteiras o adágio de que nullo rischio senza premio, hoje, sem o abrandamento daquela máxima frente a reiterados precedentes da Corte infraconstitucional.[10]

Dessarte, a mora, no pagamento do prêmio, foi alvitrada no PLC 29/2017 nos artigos 22 e 23.

De outra banda, os princípios da boa-fé e da probidade estão presentes desde a conclusão do contrato, como em sua execução, ex vi legis, art 422 do Código Civil.

No seguro ela, boa-fé, é ressaltada a partir do atual art. 765 do nosso diploma substantivo, já que no PLC em comento, “o contrato de seguro deve ser executado e interpretado segundo a boa-fé”.[11]

Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, eminente jurista, em obra com outros renomados autores, ao discorrer sobre a Boa- Fé no Direito Brasileiro invocando precedentes do Superior Tribunal de Justiça, adverte: “Por exemplo, o dever de lealdade em:

….contrato de seguro de vida é renovado ano a ano, por longo período, não pode a seguradora modificar subitamente as condições da avença nem deixar de renová-las em razão do fator de idade, sem que ofenda os princípios da boa-fé objetiva, da cooperação, da confiança e da lealdade”.[12]

Gravina diz: “do latim bonae fidei. Segundo Moreira Alves, a definição data do direito pós-clássico, relacionada aos contratos tutelados por ação de boa-fé (iudicium bona fidei), que conferiam ao juiz um poder de apreciação mais amplo do que nas ações de direito estrito (iudicium stricti iuris)”. Recorda o referido jurista securitário que a boa-fé se encontra no Título I das Institutas, do Imperador Justiniano.[13] Aliás, estes adágios encontram-se impregnados em normas de conduta, viver honestamente (honeste vivere), não causar dano a outrem (alterum non laedere) e dar a cada um o que lhe pertence (suum cuique tribuere).

Este princípio está previsto no BGB (Código Civil Alemão) – do ano 1.900, através da cunhada expressão germânica Treu und Glauben – insculpida em seu § 242.

(IV) – Alguns outros Institutos Jurídicos que Integram o Contrato de Seguro

O Seguro de Danos e o Seguro de Pessoas, além do Seguro de Responsabilidade Civil, entre outros, aqui não explanados neste tema, mas, que se encontram previstos no PLC nº 29/2017, integram a estrutura  do contrato de seguro. Aliás, apenas para registrar, a meu juízo, alguns desacertos no sobredito projeto, manifestei em sede doutrinária minha preocupação e inconformidade quanto à figura do litisconsorte em desfavor dos prejudicados no item que cuida “Do Seguro de Responsabilidade Civil”,[14] embora versado de iure constituto em um único dispositivo no atual Código Civil, ou seja, no artigo 787. Ao ensejo disse: ” O caput do art. 103 é, em sede infraconstitucional,  a meu juízo, o que causa maior perplexidade, ou seja, é o punctum dolens desta modalidade securitária de vez que ressalta que “os prejudicados poderão exercer seu direito de ação contra a seguradora, desde que em litisconsórcio passivo com o segurado”. (Grifo meu). Pergunta-se: o segurado pode entender que a culpa do evento é de responsabilidade do terceiro e, ato contínuo, promover a ação de cobrança da franquia prevista na apólice de seguro. Quid Juris?[15]

Ademais, há, talvez, por “um cochilo” dos legisladores desse projeto uma inconstitucionalidade flagrante estampada no § 2º, do artigo 113, quando afirma que “se o segurado for separado, ainda que de fato, caberá ao companheiro a metade do que caberia ao cônjuge”.

Tal assertiva foi definida pelo plenário do STF, ao determinar que o artigo 1.790 do Código Civil ao estabelecer diferenciação dos direitos dos cônjuges e companheiros para fins sucessórios é inconstitucional. Acerca do tema, foi fixada a seguinte tese, de autoria do ministro Luís Roberto Barroso: ” No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no artigo 1.829 do CC/02″.

V- Conclusão

Embora o PLC nº 29/2017, que objetiva revogar o contrato de seguro no atual Código Civil além de um único dispositivo que trata da prescrição neste tema, defina melhor certos princípios jurídicos, essa mudança, de resto, deveria, a meu pensar, ser mais abrangente no sentido de albergar, em um diploma novo, regras que abarcassem figuras legais dispersas em um mosaico securitário, hoje, já bastante fragmentado.

Em síntese apertada, a revogação pura e simples do contrato de seguro do Código Civil de 2002, é, como disse em outros comentários sob o tema em pauta, data vênia, por demais parcimoniosa em um sistema legal que, alhures, pretendia – PL 3.555/2004 e substitutivos – ser bem mais dilargado que, só para se falar em um só texto legal – verbi gratia – Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966, que conta atualmente com mais de meio século de existência.

Por fim, há de se fazer um registro importante: ventila-se no Congresso Nacional que os resseguradores não estão de acordo com a inclusão pura e simples no projeto em pauta, posto que na relação jurídica formada no resseguro há contratos internacionais que deveriam ser tratados de uma forma mais particular e, sobretudo, com maior casuística pelo fato de envolver esferas jurídicas que extrapolam o ordenamento jurídico interno.

Porto Alegre, 15 de maio de 2018.

[1] Obra citada, 16ª edição, Malheiros Editores, 2015, pág. 43.

[2] Âmbito Jurídico.com.br. O seu portal jurídico na Internet. princípios e regras:diferenças.

[3] Princípios Jurídicos do Contrato de Seguro, 2ª edição, 2018, pág. 24.

[4] Direito dos Seguros, 2016, 2ª edição, pág. 33.

[5] António Menezes Cordeiro, ob. citada, págs. 530/531.

[6] Maurício Gravina, ob citada, pág. 33.

[7] Voltaire Marensi, O Seguro no Direito Brasileiro, 9ª edição, pág. 23.

[8] Miranda, Pontes, Tratado de Direito Privado, V. 45, Ed. 1964, p. 311.

[9] Menezes Cordeiro, ob citada, pág. 577.

[10] Umberto Pipia, Trattato Delle Assicurazioni Terrestri, pág. 226.

[11] Vide art. 62 do PLC nº 29/2017.

[12] Direito Civil, Diálogos entre a Doutrina e a Jurisprudência, Luis Felipe Salomão e Flávio Tartuce, Atlas, 2017,  pág. 194.

[13] Maurício Gravina, bis in idem, pág. 65.

[14] Artigo 103 do PLC nº 29/2017.

[15]  Revista Brasileira de Direito Comercial Empresarial, Concorrencial e do Consumidor, nº 19, Out/Nov 2017, pág. 86.

 

*Voltaire Giavarina Marensi

É advogado e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Coordenador da Cátedra de Direto do Seguro e Acadêmico da Academia Nacional de Seguros e Previdência – ANSP.

Esta publicação online se destina a divulgação de textos e artigos de Acadêmicos que buscam o aperfeiçoamento institucional do seguro. Os artigos expressam exclusivamente a opinião do Acadêmico.

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