A 1ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina condenou um motorista a indenizar em R$ 50 mil, a título de danos morais, “um caroneiro” que ficou paraplégico após acidente de trânsito em que o condutor do veículo automotor chocou-se contra a traseira de um caminhão, a 170 quilômetros por hora. A vítima receberá também pensão mensal de um salário mínimo até a época em que completar 70 anos de idade.

A defesa do motorista apontou a responsabilidade do caminhão, que se evadiu do local, e também à vítima, que não estaria usando cinto de segurança no momento do acidente. Negou ainda que conduzia seu veículo a 170 km/h. Estaria, no máximo, a 100 km/h. Explicou ainda ser serralheiro, pai de três filhos, com renda mensal de apenas R$ 900.

“Se estivesse conduzindo seu veículo com atenção e cuidado exigidos por lei, teria condição de evitar a colisão, seja freando, seja desviando para a pista de ultrapassagem, já que, como dito, trata-se de rodovia de pista dupla. Possibilidade nada remota ter sido a ingestão de bebida alcoólica, fato relatado por três testemunhas, a causadora dessa falta de atenção e cuidado”, registrou o desembargador Raulino Jacó Brüning, relator da apelação do motorista infrator.

Os magistrados lembraram que um paraplégico fica dependente de outros por toda vida, perdendo liberdade de locomoção e possibilidade de desfrutar atividades físicas. A decisão foi unânime (Apelação Cível n. 2011.001216-4).

A questão que aflora deste julgado diz respeito em saber se o transportador terá algum tipo de responsabilidade civil, quando não ocorre retribuição no contrato de transporte a teor do previsto no artigo 730 do Código Civil, que trata deste tipo legal, na Seção I, de suas disposições gerais. Isto porque a Seção II, que cuida do transporte de pessoas, diz o seguinte em seu artigo 736, sem correspondência no Código Civil de 1916, “verbis”:

“Não se subordina às normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia.

Parágrafo único. Não se considera gratuito o transporte quando, embora feito sem remuneração, o transportador auferir vantagens indiretas.”

Dessarte, a interpretação que se colhe, de imediato, diz respeito em saber se no contrato de transporte realizado por amizade ou cortesia haverá alguma espécie de punição ao transportador no caso de acidente no decorrer do percurso do transporte.

Em outras palavras, exemplificando: haverá responsabilidade do transportador quando terminada a aula na faculdade ele oferece “carona” ao seu colega de classe até a sua casa e no meio do caminho o seu carro é abalroado por outro e o transportado não chega ao seu destino? ou, quando o morador de um prédio afastado do centro da cidade oferece carona ao seu vizinho e pelos mesmos motivos o destino não é atingido, ou, ainda, se um profissional liberal oferece ao seu colega, no final do expediente, uma carona ao seu vizinho de andar, e, por algum motivo – pneu furado – o “caroneiro” não consegue chegar em sua residência.

Os casos acima relatados guardam perfeita sintonia com o contrato de transporte realizado por amizade ou cortesia, que não ensejam qualquer tipo de indenização de vez que não houve dolo ou culpa do transportador.

Quid juris, se no percurso do transporte o transportador age com imprudência, negligência ou imperícia na condução do automóvel como foi o caso em questão acima decidido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina?

Parece que neste caso mesmo se tratando de transporte por amizade ou cortesia o condutor do veículo terá que indenizar os danos sofridos ao transportado, de vez que ele, condutor, ultrapassou os limites razoáveis do uso normal de uma conduta que deve ser regrada pelas normas ordinárias de circulação de veículos automotores.

O caso previsto pelo Código, em seu parágrafo único do artigo 736, prevê outra situação em que o condutor aufere no transporte vantagem indireta – não se constituindo propriamente num transporte gratuito – como é o caso em que o corretor de seguros se desloca com o proprietário do imóvel até o local do risco para efetivar a vistoria do bem antes da realização do contrato que cobrirá danos oriundos de fogo, ou raio, que venha a atingir o imóvel segurado. Dessarte, se este profissional procede com dolo ou culpa – ultrapassagem do veículo em local proibido – a responsabilidade civil – estará presente e o condutor do veículo responderá pelo transporte efetivado.

Nesse caso, é patente que a culpa do transportador é presumida, e rege-se pelas disposições do Código Civil que tratam do transporte em geral, aplicável, portanto, a cláusula de incolumidade, logo, sua culpa só será elidida caso haja alguma excludente de responsabilidade, a saber: culpa exclusiva da vítima, força maior, ou caso fortuito.

O Superior Tribunal de Justiça já pacificou a matéria através da súmula 145, que diz:

“No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave.”

A Terceira Turma daquela Corte, já decidiu que, no caso de transporte desinteressado, de simples cortesia, só haverá possibilidade de condenação do transportador mediante a prova de dolo ou culpa grave (Súm. n. 145-STJ). Outrossim, responde por culpa grave o condutor de veículo que transporta passageiro gratuitamente, de forma irregular, em carroceria aberta de caminhão, em que é previsível a ocorrência de graves danos, mesmo crendo que não acontecerão. No caso, não cabe a pretendida redução da condenação, por não ter sido apontada a lei vulnerada pelo acórdão recorrido, razão pela qual incide a Súmula 284-STF por analogia [Resp 685.791-MG, Rel. Min. Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS), julgado em 18/2/2010].

Há, por outro lado, no Código Civil, no Título IV, Do Inadimplemento das Obrigações, o seguinte dispositivo legal: Artigo 392, “verbis”:

“Nos contratos benéficos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça. Nos contratos onerosos, responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas em lei”.

Ou seja, segundo os ensinamentos de Judith Martins Costa em obra coordenada pelo eminente jurista Sálvio de Figueiredo Teixeira “nos contratos benéficos, a parte que beneficiou a outra, ao prestar beneficamente, justamente beneficiou, sacrificando-se voluntariamente, só é considerada inadimplente quando não cumpre a prestação intencionalmente (seja por dolo direto ou por dolo eventual) e não por mera negligência. Há, como se verifica, uma maior tolerância do ordenamento jurídico para com o inadimplente que contratou beneficamente, ao exigir o dolo para ter como caracterizada a imputabilidade pelo inadimplemento.”1

Neste sentido, sempre que houver culpa grave ou dolo o transportador não se eximirá de pagar indenização mesmo que se trate de contrato de transporte benévolo, pois ele só não terá responsabilidade na hipótese em que agir com a diligência de um homem probo.

A jurisprudência por sua vez não tem admitido o fato de terceiro como excludente da responsabilidade do transportador, uma vez que, entende-se necessário manter o rigor quanto à atenção do transportador, que se obriga a zelar pela integridade do transportado. Entendimento consolidado pela súmula 187, do Supremo Tribunal de Federal:

“A responsabilidade contratual do transportador, pelo acidente com passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra qual tem ação regressiva”.

Assim, se o transportador tem seguro de responsabilidade civil paga a indenização “ao caroneiro”, o segurador sub-roga-se, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano, a teor do disposto no artigo 786 do Código Civil.”

A propósito registra-se o que disse Donati:

“L’ assicurazione contro la responsabilità civile è quel contratto di assicurazione mediante il quale l´assicuratore si obbliga a tenere indenne l´assicurato di quanto questi deve pagare a un terzo per effetto di una responsabilità civile dedotta in contratto e derivante da un fatto accaduto durante la vita del rapporto assicurativo. ”2

Por fim, retornando propriamente ao tema que se cuida neste ensaio impende ressaltar em sede de contrato benéfico os ensinamentos sempre atuais dos irmãos Mazeud, que sintetizam a matéria quando assim se exprimem:

“La cuestión conserva hoy un interés en caso de transporte benévolo: Algunas resoluciones han admitido que esa prueba se efectuaba por medio de presunciones cuando la víctima, sin probar directamente una imprudencia o una negligencia, establecia que las circunstancias (estado de la carretera, visibilidade, etc) eran tales, que el accidente no podía explicarse sino por una imprudencia o negligencia del conductor del coche.”3

Frente a estes considerandos, em resumida síntese, sempre que houver dolo ou culpa grave o transportador responderá perante a vítima mesmo que se trate de contrato benévolo, ou seja, aquele em que não haja contraprestação direta, ou indiretamente, como se dessume da leitura dos dispositivos legais acima invocados.

Referências:

1 MARTINS-COSTA, Judith. “Comentários ao Novo Código Civil”, Vol.V, Tomo II. Editora Forense. 2004.

2 Antigono Donati, Trattato Delo Diritto Delle Assicurazioni private, volume terzo, Milano, 1956, pág. 33.

3 Mazeaud et Mazeaud, Lecciones de Derecho Civil, La Responsabilidad Civil. Los cuasicontratos, Parte II, pág. 126/127.


Voltaire Giavarina Marensi

É Advogado e Professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Membro da Academia Nacional de Seguros e Previdência – ANSP.


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